Primeira parte de um fascinante percurso pela pintura de naturezas-mortas, "A Perspectiva das Coisas — A Natureza-morta na Europa" pode ver-se na Fundação Gulbenkian — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 de Fevereiro), com o título 'Viagens pela ideia de Natureza'.
A ideia de Natureza tem muito pouco de... natural. Seja qual for a linguagem que consideremos. Exemplo? O trabalho de um pintor que tenha retratado cenas “naturais” como Paul Cézanne decorre de pressupostos que não encontram qualquer tipo de correspondência nas paisagens “naturais” de Avatar, o filme de James Cameron. Não será isso inevitável, de tal modo são imensas as diferenças conjunturais que separam as experiências, as sensibilidades e os olhares dos criadores? Sem dúvida. Mas é disso mesmo que se trata: sublinhar que a ideia de Natureza não tem nada de automático ou imanente, já que, em boa verdade, decorre da cultura em que produzimos, observamos e partilhamos as imagens.
A magnífica exposição “A Perspectiva das Coisas — A Natureza-morta na Europa”, patente na sede da Fundação Calouste Gulbenkian (até 2 de Maio), pode ser um precioso auxiliar para reencontrarmos e repensarmos essa questão bizarra, porventura desconcertante, da Natureza como elemento (figurativo, neste caso) que espelha o anti-natural de uma época, os seus valores e interrogações, numa palavra, a sua cultura. São 71 pinturas dos séculos XVII e XVIII (estando já agendada uma segunda parte, com início em Outubro, dedicada aos séculos XIX e XX), incluindo naturezas-mortas com frutos, flores ou peças de caça, mesas de banquetes e gabinetes de curiosidades.
De forma esquemática, talvez possamos considerar que as obras apresentadas oscilam entre dois extremos: por um lado, temos um realismo cru (mas será que podemos aplicar a nossa palavra “realismo” a uma representação surgida há três ou quatro séculos?), bem expresso no quadro Pavoas Mortas (c. 1639), de Rembrandt, com o detalhe raríssimo de integrar uma figura humana que introduz um olhar que relativiza e questiona o nosso; por outro lado, deparamos com um delirante artifício de composição cujo limite estará nos arranjos “escultóricos” de quadros como Natureza-morta com Conchas (1659), de Abraham Susenier.
A actualidade filosófica da exposição é tanto maior quanto nos pode ajudar a reflectir sobre uma outra conjuntura cultural (a nossa) em que, todos os dias, através das linguagens dominantes em televisão, somos pressionados no sentido de já nem questionar a própria ideia de Natureza. Bem pelo contrário, essas são linguagens que se assumem, já não como forma de representação do mundo, mas como “transcrição” automática das suas componentes. É por isso que uma deambulação pela galeria de exposições temporárias da Gulbenkian pode ser tão esclarecedora: afinal, a ideia de Natureza é produto de uma elaboração estética, num certo sentido de uma conquista formal, capaz de sobrepor à pluralidade incerta do mundo a lógica de uma determinada ordem visual.
terça-feira, março 09, 2010
Gulbenkian: vida e morte da Natureza
1659