sexta-feira, fevereiro 19, 2010

Viva a censura?

ANTÓNIO DE OLIVEIRA SALAZAR, 1966

1. Se compararmos a actual imprensa portuguesa com a que existia no Portugal do Estado do Novo — em particular na década de 60 e no início dos anos 70, no período da chamada Primavera Marcelista —, qual é a melhor?

2. Bem sei que esta é uma pergunta armadilhada. Porquê? Porque pode ficar automaticamente viciada pelo sistema de “comparações” que se tornou dominante no nosso jornalismo. Hoje em dia, é perfeitamente possível haver um jornalista (?) que, com total seriedade e despudor (aliás, ignorando o que seja o pudor), pergunte coisas do género: “Os filmes de Manoel de Oliveira são mais ou menos chatos que os filmes de Carl Dreyer?” Se alguém com amor à inteligência (a sua e a dos outros) recusar responder, o autor da pergunta rematará, triunfante, que o entrevistado foge vergonhosamente às questões... E só quem não vê certos momentos das nossas televisões poderá julgar que este exemplo peca por excesso.

3. Dito de outro modo: formular aquela pergunta inicial assim mesmo, sem qualquer enquadramento ou contextualização (a começar pelo facto de, no Estado Novo, existir uma Censura legal e institucionalizada), pode atrair a sugestão de que se trata de insinuar, ou mesmo de proclamar, uma qualquer nostalgia fascizante, tendente a mascarar as características — e, em particular, as formas de repressão — da ditadura salazarista.

4. Esse é um problema tanto mais complexo e incómodo quanto as memórias correntes do pré-25 de Abril estão quase todas limitadas por uma ideologia militante da Resistência enraizada no espaço comunista e, de um modo geral, tacitamente aceite por todas as outras forças políticas democráticas (à esquerda e à direita).

5. De facto, não faz sentido comparar momentos diversos da imprensa (portuguesa ou não), como se pudéssemos excluir a história, as suas complexidades e contradições. Em todo o caso, sem recalcar essas complexidades e contradições, há um plano especificamente profissional em que a pergunta pode adquirir alguma pertinência. Nesse plano, a meu ver, e em termos genéricos, a imprensa portuguesa dos anos acima referidos era inequivocamente melhor que a imprensa portuguesa deste nosso presente.

6. Jornais como Diário Popular, Diário de Lisboa e A Capital apresentavam algumas características hoje em dia profundamente abaladas:
— grande qualidade de escrita;
— abertura sistemática à diversidade cultural;
— defesa humanista da pessoa humana.
Dizer isto não traduz nenhuma lamentação pela eclosão do 25 de Abril e dos seus valores. Aliás, mais de 30 anos passados sobre esse dia do calendário de 1974, podemos e devemos resistir também ao simplismo (jornalístico, político e ideológico) que trata a data como uma espécie de porta milagrosa para um mundo automaticamente diferente, ingenuamente purificado, habitado por políticos inevitavelmente suspeitos e jornalistas heróicos a esvoaçar como frágeis borboletas sobre os campos da corrupção.

7. Se há uma bela herança do 25 de Abril, é a do entendimento da história — da história portuguesa, antes do mais — como um fluxo de forças e tensões que não pode ser reduzido aos jogos florais com que agora nos querem obrigar a não pensar, dividindo o mundo de forma estupidamente maniqueísta entre o “triunfo-da-censura” e o “abaixo-a-censura”. O 25 de Abril fez-se para crescermos e sermos responsáveis pelo nosso destino colectivo. Daí a pergunta: que entendimento têm da sua herança os discursos jornalísticos que nos tratam como se fôssemos eleitores de fraldas, ensinados a berrar por tudo e por nada?