domingo, fevereiro 21, 2010

TV: apocalípticos e repórteres

Como é que os repórteres se dirigem aos seus entrevistados? Que conceito de jornalismo transportam? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Fevereiro), com o título 'O apocalipse dos repórteres'.

Algumas práticas da informação televisiva são levadas a cabo em ambiente de descarada obscenidade. Um exemplo quotidiano é o amontoado de repórteres que espera alguém, normalmente um protagonista da cena política, assaltando-o com microfones e perguntas cruzadas. Que acontece? Quase sempre o mesmo: gera-se uma tensão desagradável e o questionado corre o risco de dizer coisas mais ou menos inseguras e contraditórias.
Não é preciso ser doutorado em ciências das linguagens para compreender que ninguém (político ou não) tem o discernimento divino de lidar com tais formas de agressividade, mantendo alguma consistência discursiva. O certo é que tal prática se instalou como modelo dominante de comunicação (?), não apenas com crescente desvergonha dos repórteres, mas também através da conivência, tácita ou táctica, da maioria dos membros de todos os partidos políticos. Aliás, não será difícil imaginar o que aconteceria se algum político perguntasse o mais sensato: “Os senhores (e as senhoras) repórteres acham que esta é a maneira correcta de estabelecer um diálogo?” Seria imediatamente apupado, não pelos espectadores em casa, mas ali mesmo, pela maioria dos repórteres.
Em 1979, num pequeníssimo papel no seu Apocalypse Now, Francis Ford Coppola surgia a dirigir uma equipa de reportagem, gritando com os soldados para que fizessem os gestos que ele pretendia: era uma caricatura do repórter como aquele que já não vê nem escuta, apenas procura uma imagem (ou um som) que sirva para criar algum efémero fogo de artifício. Passados mais de trinta anos, verificamos que essa arrogância se generalizou, a ponto de comandar o convívio (?) entre políticos e jornalistas. Veja-se, por contraste, o programa Hard Talk (BBC News): é possível fazer perguntas difíceis e contundentes, porventura incómodas, sem reduzir o entrevistado a figurante de um circo de pulgas. Chama-se a isso querer conhecer o mundo. Infelizmente, muitos repórteres apenas parecem empenhados em mostrar que o mundo não funciona. São provocadores infantis e sem imaginação, isto é, inimigos da inteligência.