Steven Soderbegh é um dos grandes experimentalistas do cinema contemporâneo (americano ou não): The Girlfriend Experience, pequena produção de 2009, é um notável exemplo das suas qualidades — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Fevereiro), com o título 'O vanguardismo de Steven Soderbergh'.
Em 2009, surgiu um filme americano cujas características podem simbolizar a confluência de dois factores historicamente determinantes: por um lado, a integração dos novos recursos digitais; por outro lado, o modo como essa integração está a alterar todas as componentes do cinema, desde a produção à narrativa.
A acreditar nas manchetes que têm dominado os media nos últimos meses, esse filme só pode ser Avatar. Em todo o caso, mesmo reconhecendo a imensa importância industrial do filme de James Cameron, estou a pensar em The Girlfriend Experience, de Steven Soderbergh. Trata-se, aliás, de um título indissociável de todo um conjunto de experiências deste cineasta com equipamento digital (nomeadamente com a câmara Red One) que, só ao longo do último ano, nos trouxe também outros dois prodigiosos objectos: Che, evocação anti-romântica de Che Guevara, e O Delator!, desconcertante comédia dramática que proporciona a Matt Damon a melhor composição da sua carreira.
The Girlfriend Experience, ainda inédito no mercado português, é o retrato de uma call girl de Nova Iorque. O facto de a personagem central ser interpretada por Sasha Grey (um nome do cinema pornográfico) ainda suscitou algumas notícias mais ou menos “especulativas” em torno do filme de Soderbergh. O certo é que a sua fraca performance financeira rapidamente o condenou ao esquecimento. Sabemos que o mercantilismo mais rasteiro domina uma grande parte do noticiário sobre cinema, condenando, à partida, os filmes de fraco investimento (ou rendimento). Tendo em conta que o orçamento de The Girlfriend Experience foi ligeiramente superior a um milhão de dólares, teria sido interessante noticiar, pelo menos, que o dinheiro gasto na produção de Avatar permitiria fazer uns 250 filmes com meios semelhantes aos que Soderbergh utilizou.
Em todo o caso, o essencial não se joga através de qualquer guerra de números, sendo Soderbergh [foto] também autor de produções caríssimas de grandes estúdios, incluindo a magnífica série que se inicia com Ocean’s Eleven (2001). Acontece que ele é um dos mais genuínos vanguardistas do cinema contemporâneo (americano ou não). The Girlfriend Experience propõe mais uma fascinante experiência no sentido de reconfigurar os modelos tradicionais de narrativa, tanto mais subtil quanto a acção coincide com o confronto entre Barack Obama e John McCain nas presidenciais de 2008, tendo como pano de fundo uma crise económica que afecta todos os valores das relações humanas, dos mais subtilmente afectivos aos mais cruamente financeiros. Soderbergh declarou que as suas influências mais importantes foram a frieza urbana de Michelangelo Antonioni (Deserto Vermelho, 1964) e a desencantada carnalidade de Ingmar Bergman (Lágrimas e Suspiros, 1972). Arrogância? Se assim o entenderem. Mas o homem tem razão.
Em 2009, surgiu um filme americano cujas características podem simbolizar a confluência de dois factores historicamente determinantes: por um lado, a integração dos novos recursos digitais; por outro lado, o modo como essa integração está a alterar todas as componentes do cinema, desde a produção à narrativa.
A acreditar nas manchetes que têm dominado os media nos últimos meses, esse filme só pode ser Avatar. Em todo o caso, mesmo reconhecendo a imensa importância industrial do filme de James Cameron, estou a pensar em The Girlfriend Experience, de Steven Soderbergh. Trata-se, aliás, de um título indissociável de todo um conjunto de experiências deste cineasta com equipamento digital (nomeadamente com a câmara Red One) que, só ao longo do último ano, nos trouxe também outros dois prodigiosos objectos: Che, evocação anti-romântica de Che Guevara, e O Delator!, desconcertante comédia dramática que proporciona a Matt Damon a melhor composição da sua carreira.
The Girlfriend Experience, ainda inédito no mercado português, é o retrato de uma call girl de Nova Iorque. O facto de a personagem central ser interpretada por Sasha Grey (um nome do cinema pornográfico) ainda suscitou algumas notícias mais ou menos “especulativas” em torno do filme de Soderbergh. O certo é que a sua fraca performance financeira rapidamente o condenou ao esquecimento. Sabemos que o mercantilismo mais rasteiro domina uma grande parte do noticiário sobre cinema, condenando, à partida, os filmes de fraco investimento (ou rendimento). Tendo em conta que o orçamento de The Girlfriend Experience foi ligeiramente superior a um milhão de dólares, teria sido interessante noticiar, pelo menos, que o dinheiro gasto na produção de Avatar permitiria fazer uns 250 filmes com meios semelhantes aos que Soderbergh utilizou.
Em todo o caso, o essencial não se joga através de qualquer guerra de números, sendo Soderbergh [foto] também autor de produções caríssimas de grandes estúdios, incluindo a magnífica série que se inicia com Ocean’s Eleven (2001). Acontece que ele é um dos mais genuínos vanguardistas do cinema contemporâneo (americano ou não). The Girlfriend Experience propõe mais uma fascinante experiência no sentido de reconfigurar os modelos tradicionais de narrativa, tanto mais subtil quanto a acção coincide com o confronto entre Barack Obama e John McCain nas presidenciais de 2008, tendo como pano de fundo uma crise económica que afecta todos os valores das relações humanas, dos mais subtilmente afectivos aos mais cruamente financeiros. Soderbergh declarou que as suas influências mais importantes foram a frieza urbana de Michelangelo Antonioni (Deserto Vermelho, 1964) e a desencantada carnalidade de Ingmar Bergman (Lágrimas e Suspiros, 1972). Arrogância? Se assim o entenderem. Mas o homem tem razão.