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Vivemos numa sociedade viciada nas miragens da tecnologia: quase tudo o que tenha alguma carga “futurista” é promovido à condição de “razão” universal e incontestável. Não que possamos menosprezar as maravilhas que acontecem graças a computadores, telemóveis e seus derivados. Acontece que a celebração unilateral dos avanços tecnológicos tende a banalizar uma dimensão fundamental (e milenar) do ser humano: a de contador de histórias.
Woody Allen, por exemplo. A estreia do seu mais recente filme, Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works no original) não suscitou as fanfarras mediáticas, especialmente televisivas, que protegem qualquer objecto a que se associe o rótulo de “efeitos especiais”; na Europa, o continente de Carl Dreyer, Sergei Eisenstein, Jean Renoir, Ingmar Bergman e Jean-Luc Godard, algum jornalismo evoluiu (?) mesmo no sentido de apenas se interessar pelo cinema enquanto montra de novos gadgets tecnológicos. Vindo do cinema americano, também muitas vezes reduzido a uma fábrica de efeitos especiais (visão simplista e infinitamente redutora), Woody Allen é o exemplo vivo dessa arte de contar histórias e da sua tocante universalidade.
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Reencontramos em Tudo Pode Dar Certo o carinho pelos contrastes do tecido urbano que pontua alguns dos momentos mais emblemáticos da obra de Woody Allen, por exemplo em títulos como Annie Hall (1977), Manhattan (1979), Broadway Danny Rose (1984), Ana e as Suas Irmãs (1986) ou Maridos e Mulheres (1992). No filme de 1979, a célebre imagem de Diane Keaton e Woody Allen sentados, contemplando a ponte de Manhattan, constitui um símbolo de um cinema sensível à sensualidade dos cenários, a ponto de, com o passar do tempo, se ter transformado também num dos ex-libris mais universais do imaginário novaiorquino.