"Eu sou um cinéfilo", diz o espectador. Mas nos dias que correm, que significa isso? E como vivê-lo? Este texto de balanço do ano — publicado no Diário de Notícias, no dia 26 de Dezembro de 2009, com o título 'Para onde vai a cinefilia? —, tenta identificar algumas das dúvidas e expectativas que tais interrogações passaram a envolver.
Em 2009, a cultura televisiva continuou a inscrever os seus devastadores efeitos no panorama cinematográfico. A marginalização dos filmes (favorecendo telenovelas, concursos e “galas” com crianças mais ou menos tristes) só pode ter um efeito prático: o cinema surge como uma curiosidade esotérica, apenas redimido do esquecimento quando há notícias sobre os milhões de um blockbuster ou imagens “escandalosas” de alguém que se despe um pouco num filme de preferência anódino. O panorama é tanto mais desesperado quanto, paradoxalmente, o cinema viveu um ano rico e multifacetado, a provar que, com filmes que nos entusiasmaram ou desiludiram, continua a valer a pena ser espectador.
Para nos ficarmos pela produção americana, a mais presente e economicamente mais poderosa, tivemos um pouco de tudo: desde pessoalíssimos empreendimentos como Grand Torino, de Clint Eastwood, até grandes desafios técnicos como O Estranho Caso de Benjamin Button, de David Fincher, e Avatar, de James Cameron, apostando na integração dos mais revolucionários recursos digitais. O poder dos americanos reflecte-se também nos felizes contrastes da sua produção independente, com destaque para Depois das Aulas, de Antonio Campos, filme empenhado em discutir a questão actualíssima das relações entre estudantes e Internet.
Foi também um ano de reencontro com autores que, em contextos muito diversos, persistem em trajectórias sem imitadores. Desde logo no cinema americano, com Quentin Tarantino a reaparecer com Sacanas sem Lei. Mas também em Portugal, com Pedro Costa (Ne Change Rien), em França, com Arnaud Desplechin (Um Conto de Natal), e no Japão, com Hirokazu Kore-eda (Andando). Nessa perspectiva, é inevitável repetir que o mercado português das salas mantém uma variedade de oferta que, sendo positiva, está longe de fornecer um panorama equilibrado da produção internacional, nomeadamente do continente europeu.
Através do lançamento de Avatar nas salas, em cópias digitais a três dimensões, o ano encerra com a reafirmação de uma viragem técnica que, por distribuidores e exibidores, está a ser encarada como uma “salvação” capaz de favorecer o renascimento do mercado. Escusado será dizer que o formato 3-D, até agora com uma história artisticamente escassa e comercialmente frustrante (lembremos os tempos pioneiros da década de 1950), contém muitas e fascinantes potencialidades. Resta saber que sentido pode fazer uma reconversão económica para o digital que ignore as características da produção corrente e o carácter (ainda) de excepção dos filmes em 3-D. Daí que seja também importante recordar o contraponto do DVD, nos últimos meses com um significativo incremento da oferta em Blu-ray. 2009 foi também um ano de reencontro com grandes referências clássicas: lembro, por exemplo, a edição de filmes de autores como Michelangelo Antonioni [foto], Jacques Demy ou Jacques Tourneur. Quando as salas estão dominadas por blockbusters e as televisões por novelas, o DVD parece ser o último reduto da cinefilia.