Anticristo é um desafio radical às formas correntes de abordagem das relações homem/mulher — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Janeiro), com o título 'Regras para olhar a beleza', a par de uma evocação das polémicas que o filme tem suscitado e ainda um ponto de vista de sinal contrário, assinado por Eurico de Barros.
De que falamos quando falamos de uma mulher? E, em particular, no interior de um casal, do modo como o homem vê a mulher? Sabemos do que se fala à nossa volta. No imaginário da imprensa cor de rosa, todos os dias duplicado pelas telenovelas, ser masculino é qualquer coisa que se confunde com o coleccionismo (de mulheres). Além do mais, todos fingem acreditar que a “família” é uma espécie de chave automática para a felicidade eterna.
Neste contexto, Anticristo é um filme necessariamente chocante. No sentido mais básico: desafia algumas ilusões universais. Primeiro, porque o homem tem medo e tenta domar as sombras que habitam a mulher (esse continente negro de que falava o pai da psicanálise). Depois, porque a mulher reage de forma brutal, estranha a qualquer padrão romântico. Filme realista, então? Bem pelo contrário: Lars von Trier encena uma fábula adulta, e para adultos, em que o cinema triunfa como último reduto de espiritualidade. Filme contra o seu próprio tempo? Claro que sim. Há uma nudez cristalina, não física, mas íntima, na exposição de Charlotte Gainsbourg e Willem Dafoe ao olhar da câmara. C’est la vie: a beleza é sempre difícil de olhar de frente.