Um romance de Baptista-Bastos relança-nos no labirinto emocional da cinefilia clássica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 de Novembro), com o título 'O mundo imaginário de Baptista-Bastos'.
No romance Elegia para um Caixão Vazio (agora reeditado pela Oficina do Livro), Baptista-Bastos convoca o leitor para uma travessia magoada de várias décadas da história de Portugal, várias vezes fazendo-o através de memórias eminentemente cinematográficas. A determinado momento, o narrador/protagonista evoca uma épica sessão de Casablanca (1942), algures na década de 60, em Lisboa , no cinema Monumental (o Monumental dos anos 60, convém sublinhar). A memória do filme surge envolvida numa nostalgia cinéfila que se cruza com a vibração política, já que a cena em que se canta a Marselhesa adquire qualquer coisa de aventura radical e efémera: “Aí, foi irreprimível: espectadores a bater palmas, os mais audaciosos também a cantar, as luzes da sala acendem-se, polícias agitam-se nos corredores, de novo o silêncio, tudo calado, intervalo longo, o recomeço da sessão e depois, no final, todos nós a caminhar apressadamente, ignorando-nos uns aos outros, nervosos, conversa para a semana, a pobre maneira portuguesa de manifestar o desacordo, a revolta, o cansaço.”
Releio estas palavras e retenho-me na emoção que as sustenta. Não é, entenda-se, uma celebração “lírica” da resistência política. Aliás, nesse aspecto, Elegia para um Caixão Vazio é mesmo um romance que, com método e dor, se demarca da retórica gerada por toda uma esquerda que nem sempre soube distinguir o impulso utópico da cruel prova do real. As referências ao cinema decorrem de um tempo em que, de facto, os filmes não existiam apenas como produtos de um marketing mais ou menos grotesco, entrelaçando-se com a vida de cada espectador, num jogo, por vezes também muito cruel, de desejo e perdição.
A prosa de Baptista-Bastos fez-me lembrar, agora, o meu pai. O narrador questiona a sua condição filial, experimentando a perversa equivalência da autoridade do seu pai e da paternidade do “partido”. Mas não foi por qualquer associação factual. Foi antes por qualquer coisa de mais íntimo que apenas consigo formular lembrando que muito daquilo que o meu pai me transmitiu sobre política e sexo passou pelo humor e, em particular, pelo anedotário nacional dos anos 60. Era uma maneira libertadora de lidar com tais temas e também, et pour cause, uma confissão implícita dos muitos medos associados à sua vivência.
Escusado será sublinhar que a memória de Casablanca não é alheia a tal contexto. As mágoas românticas de Humphrey Bogart e Ingrid Bergman estão muito longe de se reduzir a um cliché mais ou menos pitoresco para edição em DVD. Estamos a falar de um tempo em que as imagens e os sons dos filmes não existiam como matérias de circulação imediata e imediatista. O espectador que, agora, pode assistir a um qualquer filme, inclusive Casablanca, no seu telemóvel tende a encarar o cinema como um gadget, porventura fascinante, mas friamente tecnológico e intermutável. Não é culpa sua, mas talvez lhe seja impossível imaginar que os filmes já existiram como peças dramáticas de vivências interiores, inapelavelmente radicais. Creio que é também a isso que Baptista-Bastos se refere quando escreve sobre as tarefas do escritor: “O que posso é tentar ser o comunicante de um mundo imaginário (transfigurado) só possível de ser transmitido se for capaz de dar voz ao arquipélago submerso do meu inconsciente”.