quinta-feira, dezembro 17, 2009

Discos da semana, 16 de Dezembro

O ano foi deles… Bom, na verdade, se fosse necessário escolher uma “banda da década”, os Animal Collective talvez representassem a mais completa das escolhas. Pelo percurso de progressiva busca de uma identidade. Pelo talhar de uma personalidade que ganhou nitidez disco após disco até atingir a visão total em Merryweather Post Pavillion, a sua obra-prima editada em Janeiro deste ano. Pela capacidade em alargar o leque de admiradores (e descendências) sem alienar uma base que os segue de desde sempre. E, acima de tudo, por ser a banda que mais profundamente representa um sentido de construção de uma ideia pela colagem e manipulação de fragmentos do mundo à sua volta, vivendo também acima das fronteiras dos géneros, projectando na música, melhor que ninguém, características comuns a outras expressões artísticas do nosso tempo. Os Animal Collective fecham o “seu” ano e a “sua” década com um EP que, mesmo sendo como os anteriores EPs de originais uma espécie de complemento directo ao álbum mais recente, revela um interesse pelo continuar da experimentação, assegurando-nos que, mesmo em tempo de colher os louros, não se desarmam para fazer a festa. Fall Be Kind não só nos traz uma das suas melhores canções – Graze, que sublinha uma ideia de som global cruzando flautas romenas (samplando Zamfir, imagine-se) com um festim rítmico que parece juntar África com Oceania, numa visão total sob prisma urbano contemporâneo – como a esta acrescenta uma série de composições que são mais que “sobras”. As três faixas que fecham o alinhamento revelam visões texturalmente livres, formas mais abstractas, distantes do tutano do álbum deste ano, aqui encontrando segura morada. Isto sem esquecer a incorporação de memórias (via sample) dos Grateful Dead em What Would I Want? Sky?, a sublinhar o facto de a banda mais visionária do presente estar consciente de que perante o conhecimento da soma de experiências já feitas se projecta, com outra solidez, uma ideia de futuro.
Animal Collective
“Fall Be Kind”

Domino / Edel
5 / 5
Para ouvir: MySpace


Foi o grande acontecimento do ano nos palcos da música portuguesa, juntando nem mais nem menos que os nossos três maiores cantautores vivos, num espectáculo de afinidades e trocas, onde se cruzaram memórias com o desafio de novas experiências. José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias já tinham partilhado, em algumas ocasiões, os espaços de trabalho uns dos outros. Mas nunca até aqui se tinham reunido num mesmo palco, frente a um mesmo público, em volta das suas canções. Três Cantos se chamaram por quatro noites no Campo Pequeno (Lisboa) e do Coliseu do Porto. Experiência agora reunida num retrato áudio (e visual), disponível ora apenas em CD, ora em edição que ao som junta dois DVDs (o primeiro com o concerto, o segundo revelando os seus bastidores e história num documentário). Retratos que não traduzem a totalidade do espectáculo, mas uma selecção alargada do que neles se viu e ouviu. Foram concertos em ambiente informal, feitos do prazer de reinventar canções. Os três músicos não tiveram nunca uma ideia de best of na agenda do espectáculo. Daí que, entre os temas que levaram aos palcos surgissem referências a alguns dos seus discos mais recentes, num jogo que assim abarcou quase 40 anos de vivências e canções. As marcas bem distintas das personalidades da música (e das vozes) de cada um não se diluem; juntam-se antes em trio. Não procurando completar-se, mas acrescentando, cada qual à sua maneira, novos olhares, descobrindo outras formas de ler as canções. Houve recordações de tempos de luta, mas também espaço para outros caminhos. Houve humor. Festa... Contávamos com isto deles. E, convenhamos, não nos desiludiram.
Três Cantos
“Três Cantos Ao Vivo”

EMI Music Portugal
5 / 5



Eis mais um interessante exemplo de cruzamento de linguagens e, mais que tudo, vivências. Tiago Sousa (que assina as composições) começou pelo piano, descobrindo cedo um interesse quer pela música de Chopin quer pelas obras dos impressionistas. Viveu depois uma etapa mais próxima dos caminhos mais vanguardistas do rock. Fundou a Merzbau… Até que, sem esquecer as experiências entretanto acumuladas, regressou à casa “partida”. Insónia é um disco que, com as características de um auto-retrato, nos dá conta de como essas memórias antigas retomaram protagonismo na procura de uma identidade que assim se nos revela ainda em construção, sem polimento, crua e honesta. Acompanhado por João Correia (percussão) e Ricardo Ribeiro (clarinete), Tiago vive acima das fronteiras dos géneros, traçando um mundo seu onde as heranças “clássicas” partilham espaço com ideias que escutou noutras vivências mais próximas do underground nas periferias da cultura pop/rock. Assim se entende uma música que ora ecoa a Erik Satie ou Debussy, ora sublinha marcas do tempo que vivemos. E que, acima de tudo, tenta expressar tão fiel quanto possível que músico é este e o que procura. Com edição em vinil, Insónia não é destino final, mas um caminho. Mantenhamo-nos acordados para o acompanhar.
Tiago Sousa + João Correia
“Insónia”
Humming Conch
4/5
Para ouvir: MySpace


Esta é mais outra das confirmações de um 2009 que em pleno transformou em factos uma mão cheia de promessas reveladas a um público mais vasto em 2008. Promessas, na verdade, algumas delas já com alguns anos de vida. Samuel Úria, em concreto, apresentou um primeiro conjunto de canções em disco há já seis anos (chamou-lhe então O Caminho Ferroviário Estreito). Mas foi o EP Em Bruto, lançado na recta final de 2008, que o colocou sob a mira de mais olhares (leia-se ouvidos), propondo um pequeno conjunto de canções que nos faziam querer ouvir mais… Nem Lhe Tocava chega finalmente nesta recta final de ano. E traduz mais que um simples upgrade em tempo e meios face ao que esse EP poderia sugerir, inscrevendo o nome de Samuel Úria entre a linha da frente de uma interessante nova geração de cantautores que têm assinado em conjunto uma das mais vivas e consequentes etapas na história recente da canção em português. Ao letrista atento às potencialidades da língua que trabalha como matéria-prima (e que tanto sabe ter um Sérgio Godinho ou um António Variações como universos referenciais) e ao melodista formado entre horizontes que, como sublinha em Teimoso (em versão todavia menos interessante que a de Em Bruto), passam por Bob Dylan ou Tom Waits, o disco junta um trabalho de arranjos e produção (assinada por Tiago Guillul) que ultrapassam a anterior etapa lo-fi sem perder identidade. Uma forma pessoal de viver o facto de “ser português”, que não se demarca apenas nas ocasionais citações ao folclore, e toda uma maneira de entender o mundo habita entre estas canções. Marcas que, em conjunto, fazem deste disco uma coerente proposta de retrato pessoal do universo ao seu redor.
Samuel Úria
“Nem Lhe Tocava”

Flor Caveira/Valentim de Carvalho
4 / 5
Para ouvir: MySpace


Nem todo o presente pop/rock se faz necessariamente a pensar no passo seguinte, na invenção do futuro. Pelo contrário, muitas das agendas de escritores de canções e de bandas passa muitas vezes por processos de procura de identidade através de (re)encontros com as referências formadoras que estão na base de cada melómano. Nascidos em Seattle (Washington, EUA) e à volta da presença protagonista de Scott Reitherman, os Throw Me The Statue são uma banda que, um pouco como os The Shins (com quem revelam claras afinidades) procuram definir um caminho entre os trilhos já experimentados das tradições pop em terreno indie. Dois anos depois da estreia em Moonbeam, o novo Creaturesque não parece procurar novos destinos, insistindo na criação de canções onde um apelo familiar traça afinidades não apenas aos citados The Shins mas a um sentido de apelo por uma certa nostalgia indie pop que mora entre referências comuns que partilham. De novo entra em cena um trabalho de arte final mais polido, a produção limando rugosidades em canções que não parecem ter pregos de fora… Creaturesque não será um daqueles discos para marcar o ano (nem mesmo um tempo na história da música pop). Mas é uma colecção de belas canções para Vaz frágil, luminosidade e alguma melancolia (nunca assombrada) que se ouve sem a necessidade de convocar muitos adjectivos.
Throw Me The Statue
“Creaturesque”

Secretly Canadian / Popstock
3/5
Para ouvir: MySpace


Também esta semana:
Spiritualized (reedição), Sparks (ed especial vinil), Blakroc, Rolling Stones (reedição), Pet Shop Boys (EP), Sonic Youth

Brevemente:
21 de Dezembro: Okkervil River (reedição), Buddy Holly (antologia), Jacques Brel (antologia), Dave Matthews Band, Julian Casablancas (single)
28 de Dezembro: Rolling Stones (reedição), Joni Mitchell (reedições), Cluster, Judy Garland (live)
4 de Janeiro: Nick Cave (banda sonora), Crosby Stills & Nash (reedições), Madness (best of)

Janeiro 2010: Vampire Weekend, Final Fantasy, Magnetic Fields, William Orbit, Laura Veirs, Lindstrom + Christabelle, Philip Glass, Beach House, Spoon, Charlotte Gainsbourg + Beck, Four Tet
Fevereiro: Hot Chip, Los Campesinos, Yeahsayer, Midlake, Massive Attack, Shearwater, Field Music, Xiu Xiu, Peter Gabriel, Pantha du Prince, David Byrne + Fatboy Slim

PS. Os textos sobre os Três Cantos e Tiago Sousa são versões editadas de críticas originalmente publicadas na revista NS.