1. "Crimes". Por obra e graça de algumas formas de perversa coexistência das instituições judiciais com o espaço mediático, Portugal está a viver mais um capítulo de um folhetim que ameaça eternizar-se. Em causa estão, outra vez, os "crimes" de José Sócrates. Creio que qualquer cidadão de bom senso já terá formulado a pergunta mais básica: e se José Sócrates está totalmente inocente? De facto, se isso acontecer, todo este aparato enterrará ainda mais a reputação global de uma profissão — o jornalismo — que está tão abalada quanto a de algumas outras instituições da vida democrática.
2. Praça pública. Em qualquer caso, creio também que o bom senso não basta para lidarmos com o que está acontecer. Porquê? Porque me parece indispensável formular a pergunta inversa, ou melhor, simétrica. A saber: e se José Sócrates for totalmente culpado? Ora, por mais resistência que possa haver no próprio domínio jornalístico a lidar com tal paradoxo, a resposta não é fundamentalmente diferente. Isto porque se está a assistir à consolidação de um viver quotidiano em que a praça pública — e a praça pública passaram a ser os media, em especial a televisão — se transformou num puro horror humano. Os valores que nela circulam mais facilmente são a suspeição e a promoção da suspeição, a insinuação, a difamação e, por fim, essa monstruosidade ética que dá pelo nome de ignomínia.
3. O outro. Há uma maneira brutal (porventura bruta) de dizer isto: mesmo que se reunam provas cristalinas e contundentes de que o primeiro-ministro de Portugal é um perigoso salteador — e escrevo isto tendo em conta que, apesar de tudo, a presunção de inocência ainda vigora —, mesmo nesse caso, a degradação dos costumes favorecida por muitos discursos mediáticos já feriu de modo grave a identidade moral do país. Na prática, estamos a ser todos os dias ensinados a viver como se as relações sociais se esgotassem na lista de malfeitorias que podemos atribuir ao outro. E quando, desse modo, o outro se torna uma coisa, aí devemos perguntar se ainda temos consciência de pertencermos a uma sociedade. Provavelmente não temos. Talvez já nem saibamos o que isso pode ter de bom. E de bem.