Que relações existem entre a cena política e o espaço televisivo? Como se cruzam? Que fronteiras podemos desenhar entre os seus territórios? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 de Novembro), com o título 'Pacheco Pereira, Sócrates e "O Feiticeiro de Oz"'.
No debate sobre o programa de Governo, o primeiro-ministro utilizou a ironia para responder a José Pacheco Pereira. Acusando o deputado do PSD de lançar “suspeições indevidas” em relação à nomeação de gestores de empresas públicas, José Sócrates quis sublinhar a singularidade do espaço em que ambos, agora, se confrontavam, dizendo: “A Assembleia não é a Quadratura do Círculo.” A frase remetia para o programa de televisão (SIC Notícias) em que Pacheco Pereira participa regularmente. Foi um momento carregado de simbologia e, a meu ver, um dos mais importantes factos políticos do nosso não muito glorioso ano de 2009.
Não que eu queira menosprezar a extrema gravidade do processo em torno da empresa REN, muito menos dispensar o Governo de manter uma atitude clara e inequívoca em relação aos factos de tal processo. Também não pretendo favorecer uma qualquer dicotomia “pró & contra”, como tantas que o espaço televisivo promove e exponencia. Não estou, por isso, a discutir os pressupostos do referido programa, a meu ver dos poucos que, nas nossas televisões, ainda consegue sustentar dois valores essenciais: o tempo de exposição das ideias e a simples atitude de mútua escuta. Dito de outro modo: não se avalia, aqui, uma qualquer diferença de opiniões que tenha surgido, primeiro na Quadratura do Círculo, depois na Assembleia da República, entre Sócrates e Pacheco Pereira. Trata-se, isso sim, de sublinhar um facto raro: o de haver um elemento da classe política (neste caso, o primeiro-ministro de Portugal) que não se coíbe de relativizar a própria televisão como espaço de debate. E insisto na palavra: relativizar.
Na sua frase calculadamente provocatória (como muitas que se podem ouvir em A Quadratura do Círculo), José Sócrates fez aquilo que a esmagadora maioria dos políticos portugueses todos os dias recusa: lidar com a televisão, não como um altar intocável, mas sim como um espaço, entre outros, da vida democrática. Aliás, a observação era tanto mais pertinente quanto Pacheco Pereira, justamente, tem sido das raras personalidades políticas a assumir um discurso de sistemático e pedagógico questionamento das televisões e, em particular, dos seus modos de apropriação da vida política.
A meu ver, o problema de fundo não é o “controlo” sobre as televisões (aliás, em Portugal, uma das maneiras de não discutir a cultura televisiva dominante é gritar “censura” assim que alguém tenta questionar os valores dessa cultura): é o facto de continuarmos a ter uma classe política (na qual se inclui, como é óbvio, o partido do Governo) que, regra geral, encara a televisão como um veículo neutro de “transmissão”, fugindo à discussão da visão do mundo que nela se configura e difunde.
Dir-se-ia que vivemos num país semelhante ao de O Feiticeiro de Oz (a associação surge-me por ter visto há dias a respectiva edição em DVD/Blu-ray, que vivamente recomendo). Tal como nesse clássico de 1939, tendemos a ficar satisfeitos com a agitação das luzes, recusando questionar cada imagem, cada som e os seus efeitos de linguagem. Chama-se a isso, aliás, fazer política. Mas não estou a ver muitos políticos portugueses (à direita e à esquerda) a reconhecer que, há 70 anos, Hollywood possa ter gerado uma prodigiosa e actualíssima fábula política.