domingo, novembro 01, 2009

Em conversa: António Pinho Vargas (2)

Segunda parte da publicação de uma entrevista com António Pinho Vargas que serviu de base a uma entrevista publicada no DN a 26 de Outubro com o título ‘Um ciclo de álbuns que abriu novos caminhos’. Esta entrevista vai ser aqui publicada ao longo dos próximos fins de semana.

Os dois discos [Solo I e Solo II] funcionam como um ponto de chegada ou são um patamar para pensar qualquer coisa que daqui possa eventualmente surgir?
Eu diria que isso está em curso. Ainda não tenho uma resposta para dar, mas pelo menos tenho uma resposta parcial. Há um lado, que poderia ser o lado definitivo, de fechar um ciclo. Então há um lado que efectivamente é isso: são aquelas músicas, compostas naquelas circunstâncias, que eu quis fazer isto e então está cá. Mas o que se passou lá, ou seja, ter sido muito longo, quer dizer que estava com invenção, com ideias muito diferentes para algumas músicas. Aquilo, em si, parece-me extremamente criativo. Depois tenho feito uma série de concertos desde a saída do primeiro disco que, para meu enorme prazer, terminam normalmente com a chamada standing ovation, ou seja, as pessoas de pé. Isto nas mais variadas circunstâncias, tanto faz ser em Cerveira como em Viana do castelo ou Sines ou CCB ou até na Festa do Jazz no São Luiz, que à partida era um terreno onde eu estava, não diria excluído, mas ao qual há muito tempo não fazia parte...

Foi já este ano, em Junho…
Fui lá tocar, depois tocaram músicos que legitimamente fazem parte desse terreno – o Bernardo Sassetti, o Carlos Martins o Laurent Filipe – e antes é o meu concerto, que abre o festival, e termina mais uma vez com a standing ovation. O que foi naturalmente um prazer para mim. Mas voltando à questão: eu pelo menos vou voltar a tocar. O que resulta disto é que o que poderia ser um fecho de ciclo, traz-me de volta ao palco, à interacção com o público, na verdade com uma presença do passado de 70s e 80s, mas a capacidade de manipular aquele material, por exemplo nos concertos, foi aumentando. E por isso eu quis regravar algumas coisas. Porque nos concertos uma pessoa está livre e se tem uma ideia e ela funciona, então faz... O David [Ferreira] já me disse que, por ele, avançava já para o 'Solo III'... (risos)

Gravaria um terceiro volume sob o título 'Solo'?
Agora 'Solo' já não teria sentido... Não estou a pensar em gravação para já. Mas há qualquer coisa no ar que fica depois disto. Não sei o quê, daí ter disto que é uma resposta parcial. Há ainda uma série de interrogações às quais ainda não tenho resposta. Agora há vontade de tocar... E depois logo se vê. Depende de vários contextos... Eu diria que depende do vento lá fora, para citar o Fernando Pessoa... Isto quer dizer que há o real, há o mundo. Deixem-me interagir com esse mundo e depois logo se vê. Apesar disto ser um trabalho solitário, tudo o que é existente no mundo entra em relação com tudo o resto. Uma relação intersubjectiva, se for entre pessoas. Mas o público é uma abstracção... Então é isso... O vento lá fora... E eu estou a ver o vento a soprar e logo verei se vou com ele, se resisto...

É curiosa essa sensação do que é uma pessoa sentir-se ou não integrado na Festa do Jazz, como falava há pouco... Esta é uma música que já transcendeu essas fronteiras, mas grande parte dela nasceu como jazz... Como é isso de uma música nascer uma coisa e depois ganhar outro corpo...
Devo sublinhar que gostei de receber o convite do Carlos Martins, que é o director artístico do festival. Disse-me que há muitos anos que não fazia um concerto, que aquilo era uma coisa especial, que se juntavam muitos músicos e que os mais novos não conheceriam a minha música e que alguns deles nunca me ouviram tocar. Respondi que teria o maior prazer em ir lá tocar. E correu bem. A minha música, nos anos 80, começou mais ou menos circunscrita ao jazz, mas muito ligada à estética da ECM. Ou seja, músicos europeus, de várias direcções... E eu encontrei o meu caminho mais ou menos a partir dessa corrente.

O seu primeiro disco, Outros Lugares, surge em 1983… Dois anos depois, Cores e Aromas tem um êxito assinalável…
Nessa altura as coisas, por um lado, tiveram um sucesso público que foi surpreendente. Uns anos mais tarde o João Gobern disse-me que as pessoas do meio diziam entre si que o sucesso da Dança dos Pássaros (do Cores e Aromas, de 1985) era inexplicável. Quer dizer, de acordo com os paradigmas de análise que tinham, aquilo não tinha explicação. Foi ‘power play’ nas rádios, que era uma palavra que eu nem conhecia. Mas a partir desse momento o núcleo duro do jazz reagiu, como é habitual, com alguma resistência: isto se calhar já não é jazz! Passado algum tempo não era jazz de todo. E nessa altura, pouco depois, o Mário [Laginha] já estava no terreno. Aliás, o primeiro disco da Maria João e dele saiu em 83, no mesmo ano que eu. Mas o disco deles era fundamentalmente de jazz mesmo. Não tinha a autonomia que o meu Outros Lugares, de 83 já tinha. O Bernardo [Sassetti] na altura era muito novo, mas passado uns anos começou a tocar integrado naquele contexto dos Moreiras, que era jazz jazz... Esses músicos, uma década mais tarde em relação a mim, acabaram por ter percursos de inquietação criativa similares. Simplesmente são mais novos que eu e tiveram-no mais tarde. E actualmente, aquilo que há uns anos era problemático, neste momento eu ir tocar à Festa do Jazz terminou com standing ovation porque deixou de ser problemático. Mesmo toda a diferença que apresenta, e é considerável em relação ao jazz… jazz, deixou de se tornar incomodativa mesmo para alguns dos membros do núcleo duro do jazz.

(continua no próximo sábado)