A apresentação da ópera La Zaira, em versão de concerto, na Fundação Calouste Gulbenkian (Grande Auditório, 15 e 17 de Outubro), ficará por certo como um acontecimento marcante da temporada 2009/2010. Desde logo pela raridade do evento: foi a primeira audição moderna desta obra de Marcos Portugal (1762-1830), inspirada em Voltaire e estreada em 1802; depois pela reunião de alguns talentosos intérpretes, com inevitável destaque para o soprano Maria José Moreno (compondo uma notável Zaira, tecida de serenidade e paixão) e o tenor Aldo Caputo (poderoso e subtil intérprete de Orosmane) — a Orquestra e Coro Gulbenkian, impecáveis, foram dirigidos pelo maestro Jorge Matta.
Centrada no convulsivo amor entre Zaira, uma escrava cristã, e Orosmane, sultão muçulmano, La Zaira possui algo de um bizarro "Romeu e Julieta", dir-se-ia para encerrar o século XVIII, afinal com um subtexto afectivo e político cujos ecos simbólicos não se desvaneceram. Além do mais, através dos desencontros trágicos da relação Zaira/Orosmane, Marcos Portugal [gravura da época, fragmento] reflectiu também a sua condição de compositor entre duas épocas e, mais especificamente, na fronteira artística e ideológica de dois séculos — vale a pena, a esse propósito, ler as esclarecedoras linhas escritas por Bárbara Villalobos (programa de sala). Creio que se pode dizer que o entusiasmo do público — que, no final, aplaudiu longamente cantores e músicos — reflectiu também esse misto de encanto e perplexidade: escutámos, afinal, uma sedutora obra de "transição", por assim dizer vogando nas águas onde, por certo, alguns já pressentiam a eclosão do romantismo.