Como filmar as convulsões da intimidade familiar? Eis é uma fascinante resposta que vem do Japão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 de Outubro), com o título 'As famílias segundo Hirokazu Kore-eda'.
Hirokazu Kore-eda é um cineasta dos pequenos detalhes familiares, por vezes partindo de situações eminentemente trágicas. Por exemplo, em 1995, com Maboroshi No Hikari (título inglês: Illusion), filmou a situação extrema de uma jovem mulher que, com o filho, enfrenta a notícia do suicídio do marido. Em todo o caso, Kore-eda não gosta que o seu trabalho seja interpretado a partir de grandes simbolismos. Recusa, por isso, que a família do seu filme Andando [estreou dia 8] seja vista como modelo da actual classe média japonesa: “Não quis que o meu filme funcionasse como um modelo. Fi-lo antes baseado nas minhas memórias particulares e também na observação. Tenho a sensação de que os filmes que tentam sugerir modelos quase nunca resultam.”
Aquilo que o interessa é, afinal, o labirinto das gerações e as muitas barreiras que entre elas se desenham. Quando confrontado com as muitas dificuldades que, nos seus filmes, marcam as relações entre jovens e idosos, responde com algum laconismo: “São relações difíceis, disso não há dúvida.” Afinal de contas, o seu filme Ninguém Sabe (2004) era mesmo um retrato extremo da incompatibilidade familiar: nele, um grupo de crianças sobrevivia, sem qualquer adulto, num pequeno apartamento de Tóquio.
O sentimento de espontaneidade das suas cenas é muito forte, mas não decorre de nenhuma estética naturalista. No caso de Andando, Kore-eda contabiliza mesmo o seu trabalho: “Noventa por cento do filme estava escrito no argumento, o que não impediu que tivesse emendado muita coisa nos ensaios.” Além do mais, o seu olhar mantém-se atento aos sobressaltos desses mesmos ensaios: “Os actores também me deram ideias.”
Quando observamos as aproximações e conflitos das personagens de Andando, o rigor das imagens e a intensidade das durações, é inevitável pensarmos na herança de um dos mestres do cinema japonês, Yasujiro Ozu (1903-1963). Kore-eda não recusa a possibilidade de ter sido influenciado por ele: “Talvez sim.” Mas, curiosamente, o mestre japonês que evoca é Mikio Naruse (1905-1969), autor de um universo de grandes tensões dramáticas, quase sempre ligadas a perturbantes convulsões eróticas: “Em termos pessoais, sinto-me mais influenciado por Mikio Naruse do que por Ozu. E ainda mais por Ken Loach ou Hou Hsiao Hsien do que por Naruse.”
Valia a pena, por isso, perguntar a Kore-eda que filmes o interessam enquanto espectador. Mais concretamente: dois ou três títulos que o tenham marcado no último ano. Cita um americano: O Cavaleiro das Trevas, de Christopher Nolan. E dois da Coreia do Sul: Secret Sunshine, de Chang-dong Lee, e Mother, de Joon-ho Bong (este último tem estreia prevista em Portugal para Março de 2010). E a propósito da proliferação do cinema em DVD, sublinha: “Tanto quanto possível, prefiro sempre ver os filmes nas salas.”