sábado, outubro 03, 2009
Ciclo Stockhausen: Dia 1
N.G.: Num dos filmes projectados durante a tarde, Karlheinz Stockhausen explicava como via a sua música como um espaço projectado para o futuro. Nada disso o impedindo de, no seu âmago, essa mesma música aceitar, nem que pontualmente (mesmo sob novas formas e demandas), marcas que reflectem outros tempos. O tal tom “primitivo” que, como descrevia no mesmo filme, lhe surgira como descrição de um embaixador de um país africano depois de ouvir o magistral ‘Stimmung’. No primeiro dos três dias de um ciclo dedicado a Stockhausen (e em concreto à apresentação de seis horas do ciclo Klang, que o compositor deixou incompleto) sugestões de passado e futuro passaram pelo palco do Grande Auditório da Gulbenkian.
O ciclo de concertos (propriamente ditos) começou com a hora que abre o ciclo. Himmelfahrt (Ascensão) foi apresentada numa versão para sintetizador (António Perez Abellan, na foto), soprano (Barbara Zarichelli) e tenor (Hubert Mayer), com projecção de som por Kathinka Pasveer. Entre a evolução do que quase poderia ser uma reflexão modernista sobre a forma da ‘fuga’, com um programa distinto para cada uma das mãos do teclista, o sintetizador desenha um espaço onde o tempo e os timbres sugerem, como o próprio Stockhausen descreveu, o “inimaginável, inaudito, invisível” da ascensão. As palavras cantadas reforçam depois a carga de uma meditação sobre a transcendência, central a esta primeira hora do ciclo. “Uma oração musical de olhos fechados”, como o compositor a imaginou, esta primeira hora afirma uma identidade mística que, mesmo diferente da que conduziu a obra de um Messiaen, não deixa de revelar uma relação profunda (culturalmente enraizada e, portanto, antiga) entre o criador da música e o Criador da Humanidade.
Um “agradecimento” falado verbalizou, na segunda parte do concerto - na qual se escutou Hoffnung (Esperança) - uma relação semelhante com o divino à que havia sido lançada na primeira hora. Para violino (Juditha Haberlin), viola (Axel Porath) e violoncelo (Dirk Wietheger), a nona hora do ciclo Klang traduz um dos raros instantes em que Stockhausen compôs para pequenos ensembles de cordas. Ao virtuosismo exigido aos músicos a obra junta desafios performativos que acabam por dar corpo a uma música afinal nem sempre invisível. De comum às duas primeiras obras apresentadas uma curiosa relação com o silêncio que, no final de cada uma, só se rompe pela entrada em cena do outro lado da sala (ler, os espectadores).
Arte e artesanato
J.L.: O reencontro com Stockhausen também através dos filmes — Mikrophonie (1966), de Sylvain Dhomme, e Stockhausen in den Höhlen von Jeita (1969), de Anne-Marie Deshayes — permitiu-nos um contacto muito directo com as peculiaridades das suas interpretações e conceitos interpretativos.
O primeiro é um registo "convencional" de uma performance, num espaço de estúdio, dando-nos a ver um Stockhausen [foto] que desempenha as funções de maestro como um verdadeiro director de régie. O segundo documenta os trabalhos de preparação de um espectáculo nas grutas de Jeita, no Líbano, espaço fascinante que seduz o compositor pelo seu eco e por toda uma ambiência caracterizada por uma elevada taxa de humidade.
São ilustrações eloquentes de um princípio que, a certa altura, o próprio Stockhausen enuncia: o de que o aparato da interpretação, mesmo decorrendo de uma intransigente fidelidade à pauta, implica também variáveis que não podem ser separadas dos intérpretes e do contexto em que tudo acontece. São, enfim, exemplos de uma relação do cinema com a música hoje em dia perdida através da formatação de muitos "making of". No fundo, descobrimos a música como uma prática artística que não pode ser desligada dos valores mais primitivos de um certo artesanato: rigor dos trabalhos do corpo (as mãos, as vozes, etc.), adaptação às circunstâncias concretas, enfim, criação de eventos únicos e radicais.