Stockhausen nos estúdios da WDR
Este texto foi publicado na edição de 12 de Setembro do DN Gente com o título 'Contar as histórias da música do século XX'.
No epílogo de O Resto É Ruído, Alex Ross diz que “no início do século XXI, o impulso de colocar em oposição a música clássica e a cultura pop já não faz sentido emocional ou racional”. De facto tem razão. Vemos John Tavener a escrever uma peça para a voz de Björk. Escutamos a música dos Kraftwerk reinventada pelo Balanescu Quartet. Redescobrimos uma ária de Madama Butterfly de Puccini a servir de cenário e corpo a uma canção de Malcolm McLaren. Encontramos figuras como Suzanne Vega ou Simon a escrever letras para canções de Philip Glass. Ouvimos David Byrne, mesmo ciente de não ter uma voz preparada para o bel canto, a cantar Verdi num álbum seu. E sabemos que Rufus Wainwright concretizou finalmente o sonho de fazer uma ópera... E o que traz Alex Ross a esta multidão de acontecimentos acima de velhas fronteiras? É simples: escreveu o primeiro grande livro sobre a música (clássica) do século XX_usando uma linguagem e métodos a que estamos mais habituados em publicações de referência sobre a música popular. Tem por título O Resto É Ruído e, em tradução de Mário César d’Abreu para a Casa das Letras, chegou esta semana às livrarias portuguesas.
Que fique claro que este não é o primeiro livro a abordar de forma cativante os universos da música clássica. Mas em O Resto é Ruído Alex Ross acompanha a história do século XX desde os dias de Mahler, Strauss ou Debussy às passagens de testemunho no virar do milénio com Adams, Golijov ou Pärt, em cada época, compositor e obras contando histórias... Esta história feita de histórias começa em 1906, quando grandes figuras da música europeia se juntam na cidade austríaca de Ganz para assistir à estreia da ópera Salomé, de Richard Strauss (ver foto no topo da página ao lado), o momento que para o autor do livro marca uma viragem que define rumos fundamentais que a música seguiria logo depois... Essa noite de 16 de Maio de 1906 e os ecos que o que ali se escutou lançaram nos dias seguintes são o ponto de partida para esta narrativa que, entre outros momentos, recorda depois o respeito com que os taxistas da mesma Viena saudavam a passagem de Mahler na rua ou o “escândalo” que representou (em 1908) a estreia do Quarteto de Cordas N.º 2 de Schoenberg (que o autor compara ao da primeira interpretação da Sagração da Primavera de Stravinsky e ao lançamento de Anarchy In the UK dos Sex Pistols). Evoca-se a aventura visionária dos Ballets Russes na Paris dos anos 10, a descoberta de uma identidade americana através da música de nomes como Charles Ives ou George Gershwin, ligando este último ao quotidiano da Nova Iorque dos anos 20, em tempo de descoberta de novas ideias, pela assimilação do jazz.
Imagem da produção original de 'A Sagração da Primavera'
“A Arte do Medo” é o título do capítulo que, mais adiante, narra factos da Rússia musical sob Estaline (lembrando sobretudo Shostakovich e Prokofiev) e que estabelece pontes directas entre retratos, da mesma época, na América de Roosevelt (com Copland e Barber, entre outros) e na Alemanha de Hilter (entre reencontros com Wagner e Bruckner e a redescoberta de Richard Strauss).
A abertura de horizontes novos que chega no pós-guerra, os choques entre as vanguardas dos anos 50 e 60, os diálogos entre a cultura pop e os minimalistas americanos e um olhar pelas figuras que nos anos 80 e 90 lançaram pistas para o presente que hoje escutamos levam-nos até ao fim de uma história que se saboreia como uma narrativa em 575 páginas.
Lá estão as obras, os compositores, os palcos. Mas mais que isso as vidas e os factos que os moldaram, os encontros que os marcaram, as controvérsias que ocasionalmente geraram.
A fechar, Alex Ross sugere um conjunto de discos que podem servir como banda sonora para as histórias que aqui vai relatando.