O extraordinário filme de Kathryn Bigelow, Estado de Guerra [foto em cima], é um esclarecedor exemplo da ousadia criativa dos grandes autores americanos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 de Setembro), com o título 'Redescobrindo a energia criativa de Hollywood'.
Estreou-se esta semana nas salas portuguesas [17 de Setembro] o fabuloso filme Estado de Guerra (título original: The Hurt Locker), de Kathryn Bigelow, não apenas um retrato íntimo de um grupo de soldados americanos no Iraque, mas também um exercício de cinema que se coloca na vanguarda do debate contemporâneo sobre as virtualidades do realismo e a necessidade, estética e ética, de reagir ao generalizado “naturalismo” televisivo.
A simples existência do filme de Bigelow serve de desmentido a um velhíssimo e muito poderoso preconceito segundo o qual o cinema americano é avesso a lidar com as convulsões da história e, em particular, com os traumas políticos e afectivos do seu próprio país. Por vezes, face a certo tipo de discursos “jornalísticos”, tem-se a sensação de que só é possível discutir o cinema americano a partir de uma birra infantil: os filmes teriam que ser todos “bons” ou todos “maus”... Em boa verdade, um olhar minimamente disponível compreende que, desde os tempos fundadores de David W. Griffith [foto] até à actualidade de David Fincher, a energia criativa de Hollywood revela uma sistemática, por vezes muito corajosa, capacidade de lidar com a história dos EUA, enfrentando os seus eventos, símbolos e contradições. Nesse sentido, qualquer imagem unívoca de Hollywood, reduzindo o labor dos seus filmes aos clichés promocionais dos blockbusters de Verão, não é apenas factualmente incorrecta: através de tal imagem, empenhada em “denunciar” o imobilismo ideológico do cinema americano, apenas se promove um outro tipo de chantagem ideológica, enraizada no mais ancestral anti-americanismo primário.
Não deixa de ser irónico que o filme de Bigelow tenha sido lançado em simultâneo com um outro título, Pânico em Hollywood, que tem por tema central os próprios bastidores do cinema americano e, em particular, as relações nem sempre muito saudáveis entre produtores, actores e pessoal executivo. Realizado por Barry Levinson, o filme distingue-se por um tom de comédia muito sarcástica, e tanto mais quanto nasce de um olhar visceralmente interior: Pânico em Hollywood foi escrito pelo produtor Art Linson, adaptando o seu próprio livro What Just Happened? Bitter Hollywood Tales from the Front Line. No elenco figuram nomes tão fortes como Robert De Niro, Sean Penn, John Turturro, Robin Wright Penn, Kristen Stewart (a jovem protagonista de Crepúsculo) e Bruce Willis. A sua presença, até pela auto-ironia que por vezes implica (veja-se a composição de Willis como estrela caprichosa), reforça o efeito perverso de assistirmos a uma cruel contemplação de Hollywood no espelho das suas contradições.
Neste contexto, o mais bizarro é o tempo que foi preciso esperar para, finalmente, vermos os dois filmes. Pânico em Hollywood teve a sua estreia mundial em Maio de 2008, no Festival de Cannes (com honras de filme oficial de encerramento), enquanto Estado de Guerra foi revelado, também em 2008, há cerca de um ano, na Mostra Cinematográfica de Veneza. Dir-se-ia que a própria máquina de difusão de Hollywood evoluiu de forma também ela perversa, a ponto de não saber o que fazer com algumas das suas produções mais radicais, ou apenas estranhamente “diferentes”. Como se os estrategas do marketing já só soubessem lidar com blockbusters...
Estreou-se esta semana nas salas portuguesas [17 de Setembro] o fabuloso filme Estado de Guerra (título original: The Hurt Locker), de Kathryn Bigelow, não apenas um retrato íntimo de um grupo de soldados americanos no Iraque, mas também um exercício de cinema que se coloca na vanguarda do debate contemporâneo sobre as virtualidades do realismo e a necessidade, estética e ética, de reagir ao generalizado “naturalismo” televisivo.
A simples existência do filme de Bigelow serve de desmentido a um velhíssimo e muito poderoso preconceito segundo o qual o cinema americano é avesso a lidar com as convulsões da história e, em particular, com os traumas políticos e afectivos do seu próprio país. Por vezes, face a certo tipo de discursos “jornalísticos”, tem-se a sensação de que só é possível discutir o cinema americano a partir de uma birra infantil: os filmes teriam que ser todos “bons” ou todos “maus”... Em boa verdade, um olhar minimamente disponível compreende que, desde os tempos fundadores de David W. Griffith [foto] até à actualidade de David Fincher, a energia criativa de Hollywood revela uma sistemática, por vezes muito corajosa, capacidade de lidar com a história dos EUA, enfrentando os seus eventos, símbolos e contradições. Nesse sentido, qualquer imagem unívoca de Hollywood, reduzindo o labor dos seus filmes aos clichés promocionais dos blockbusters de Verão, não é apenas factualmente incorrecta: através de tal imagem, empenhada em “denunciar” o imobilismo ideológico do cinema americano, apenas se promove um outro tipo de chantagem ideológica, enraizada no mais ancestral anti-americanismo primário.
Não deixa de ser irónico que o filme de Bigelow tenha sido lançado em simultâneo com um outro título, Pânico em Hollywood, que tem por tema central os próprios bastidores do cinema americano e, em particular, as relações nem sempre muito saudáveis entre produtores, actores e pessoal executivo. Realizado por Barry Levinson, o filme distingue-se por um tom de comédia muito sarcástica, e tanto mais quanto nasce de um olhar visceralmente interior: Pânico em Hollywood foi escrito pelo produtor Art Linson, adaptando o seu próprio livro What Just Happened? Bitter Hollywood Tales from the Front Line. No elenco figuram nomes tão fortes como Robert De Niro, Sean Penn, John Turturro, Robin Wright Penn, Kristen Stewart (a jovem protagonista de Crepúsculo) e Bruce Willis. A sua presença, até pela auto-ironia que por vezes implica (veja-se a composição de Willis como estrela caprichosa), reforça o efeito perverso de assistirmos a uma cruel contemplação de Hollywood no espelho das suas contradições.
Neste contexto, o mais bizarro é o tempo que foi preciso esperar para, finalmente, vermos os dois filmes. Pânico em Hollywood teve a sua estreia mundial em Maio de 2008, no Festival de Cannes (com honras de filme oficial de encerramento), enquanto Estado de Guerra foi revelado, também em 2008, há cerca de um ano, na Mostra Cinematográfica de Veneza. Dir-se-ia que a própria máquina de difusão de Hollywood evoluiu de forma também ela perversa, a ponto de não saber o que fazer com algumas das suas produções mais radicais, ou apenas estranhamente “diferentes”. Como se os estrategas do marketing já só soubessem lidar com blockbusters...