domingo, agosto 23, 2009

Para (re)descobrir Leonard Bernstein

A Missa é uma das mais interessantes criações de Leonard Bernstein como compositor, traduzindo (como aconteceu em diversos outros momentos da sua obra, nomeadamente West Side Story ou Candide) uma visão transversal e ecléctica da música por parte de um homem que nela soube soube projectar o seu tempo e a sua identidade cultural. Ecos dos palcos da Broadway, gospel e até música pop juntam-se aqui a uma ideia que aceita igualmente as genéticas da tradição clássica ocidental. No seu tutano é evidente uma reflexão sobre a fé, mas os textos cantados olham mais longe, ora abordando questões na esfera do mundo político ora olhando interiormente num debate sobre identidade. Estreada em 1971, a Missa de Leonard Bernstein tem nesta nova gravação (a segunda editada este ano) mais uma leitura exemplar, de resto já elogiada em diversas publicações da área. Toma como protagonista Jubilant Sykes no papel central, apresentando uma segura direcção de Marin Alsop, à frente da Baltimore Symphony Orchestra.
As várias gravações já disponíveis desta obra eram já, todas elas, invariavelmente sólidas. Nesta nova leitura, Marin Alsop consegue sublinhar de forma ainda mais produnda a textura orquestral (sobretudo nos episódios mahlerianos), não deixando ao mesmo tempo de exibir igualmente segura abordagem aos instantes de alma mais… pop. Igualmente vistosa é a cor que jorra da música quando se abrem alas para deixar chegar à boca de cena ecos da tradição dos palcos da Broadway, afinal não menos determinantes na definição de parte da identidade americana de alguma da música do século XX. Vinca-se assim o ecletismo de uma obra que soube escutar a América do seu tempo, num todo que, no final, se revela um corpo uno e vivo.

Aproveitamos o lançamento desta nova gravação da Missa de Leonard Bernstein para aqui publicar o texto seguinte, que evoca o tempo e contexto em que o compositor preparou e escreveu esta obra. O texto foi originalmente apresentado no suplemento DN Gente a 30 de Maio, com o título ‘A Missa que Jackie Kennedy encomendou’:
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Os últimos meses da década de 60 não foram fáceis para Leonard Bernstein (1918-1990). Há muito que era um maestro mundialmente aclamado, igualmente célebre sendo já a sua obra como compositor (da qual se destacavam já, além dos musicais West Side Story ou On The Town, três sinfonias e mesmo experiências na ópera). Reconhecida era também uma personalidade política liberal, tendo-se oposto à Guerra do Vietname, às candidaturas de Eisenhower e Nixon e sido inclusivamente investigado pelo senador MCarthy. Porém, em finais de 1969, dois eventos assombraram o seu mundo político e social.
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O primeiro caso chegou da crítica de dois músicos negros, que se afirmaram vítimas de discriminação racial quando tinham tentado um lugar na Filarmónica de Nova Iorque (quando dirigida por Bernstein). O maestro, que tinha já defendido a entrada de músicos afro-americanos na orquestra, explicou que os candidatos que se queixavam não tinham sido admitidos por falta de qualidades técnicas. Apesar de ilibado, o caso mediático abalou a sua imagem. Pouco depois, numa tentativa de apoiar as famílias de membros dos Black Panthers, a braços com um complicado (e longo) caso legal, Felicia Bernstein, a mulher do maestro, organizou uma recepção na sua casa, em Park Avenue, mal sabendo da postura anti-semítica do movimento. Um artigo de Tom Wolfe, Radical Chic: That Party At Lenny's, deu conta da festa, e novo "caso" assombrou o músico.
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Leonard Bernstein trabalhava então, e há já algum tempo, numa obra (a Missa) que Jackie Kennedy lhe tinha encomendado para assinalar a inauguração do Kennedy Center, em Washington. E é num estado de desencanto, provocado pelos dois incidentes de finais de 1969, que vai, com a irmã, ver o musical Gospel, com texto de Stephen Schwartz, num registo de "ópera rock", tal como o já célebre Jesus Cristo Superstar. O musical entusiasmou-o, nele tendo encontrado as respostas que antes não havia encontrado. E entre as respostas surgiu a contratação de Schwartz para co-assinar os textos da Missa.
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Para a personagem principal de uma obra na qual queria reflectir sobre a fé tinha já encontrado figura de referência no padre Philip Berrigan, um católico que, com outros activistas pacifistas, tinha sido acusado de uma conspiração contra Henry Kissinger, então conselheiro de segurança da Administração Nixon. Procurando na Missa um debate sobre um reencontro com a fé em tempos agitados, a escolha parecia a mais indicada. Visitou o padre no centro onde estava detido, tendo a visita levado Edgar Hoover, do FBI, a avisar Nixon de que a obra que iria inaugurar o Kennedy Center teria um "texto subversivo", como relata Paul Myers na biografia do compositor.
A Missa estreou-se na inauguração do Kennedy Center, a 8 de Setembro de 1971 (ver foto), revelando um formato inesperado para quem chegara a pensar, pouco depois da encomenda lançada pela viúva do presidente Kennedy, compor uma missa de requiem. Da pop ao gospel, de linguagens da música contemporânea a janelas abertas ao som característico dos musicais da Broadway, esta é uma das composições mais surpreendentes da obra de Bernstein.


Outras gravações:



Muitos recordam-no essencialmente como maestro, mas o tempo acabaria por ter de fazer justiça à obra de Leonard Bernstein enquanto compositor. E de facto, nos últimos anos, várias edições têm surgido no mercado, recuperando o obras suas, muitas delas até então apenas disponíveis em gravações dirigidas pelo próprio Bernstein. A Chandos, por exemplo, lançou já este ano uma gravação da Missa dirigida por Kristjan Järvi e, em 2004, um outro título, com a Sinfonia Nº 3 (Kaddish) como peça central, por Leonard Slatkin. Por sua vez, a Naxos apresentou novas gravações da Sinfonia Nº 1 (em 2004, por James Judd) e uma reunião de obras para bailado, nomeadamente Fancy Free e Dybukk, por Andrew Mogrelia. Já a Harmonia Mundi apresentou, há cinco anos, uma Missa dirigida por Kent Nagano. Isto sem esquecer, com o próprio compositor como protagonista, a edição de Candide em DVD pela Deutsche Grammophon e a caixa de 10 CD que, no ano passado, recuperou parte da sua discografia originalmente lançada no catálogo da CBS (hoje integrado na Sony Music).
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Para os interessados em recuperar a história gravada da Missa de Bernstein, aqui fica a sua discografia completa:
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1971 - Gravação com o elenco original da estreia no Kennedy Center, com Alan Titus como voz protagonista. Leonard Bernstein dirige um conjunto de músicos expressamente reunidos para a ocasião. Edição em álbum duplo em vinil, mais tarde disponível em CD. Edição CBS Records.
2004 - Gravação editada pela Harmonia Mundi, com Kent Nagano frente à Deutsches Symphonie-Orchester, de Berlim. No papel protagonista surge Jerry Hadley. Edição em CD duplo.
2009 - Versão recentemente gravada, com Kristjan Järvi a dirigir a Tonsküstler Orchester. A grande diferença face às demais gravações é a opção por levar um barítono (e não um tenor) ao papel protagonista, escolhendo aqui a voz de Randall Scarlata. Edição em CD duplo pela Chandos.
2009 - A mais recente gravação é a que abre este post, editada esta semana pela Naxos. A maestrina Marin Alsop dirige aqui a Baltimore Symphony Orchestra e conta com Jubilant Sykes como protagonista. Edição em CD duplo.
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A discografia completa da Missa de Bernstein envolve ainda um lançamento em DVD. Editado em 2003, regista uma actuação ao vivo num auditório do Vaticano. Douglas Webster é o protagonista. Boris Brott dirige o Coro e Orquestra do Conservatório de S. Cecilia.