O "Curtas" de Vila do Conde expôs o curioso balanço entre artifícios (técnicos) e realismos (dos olhares) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Julho), com o título 'A realidade do cinema em Vila do Conde'.
Que faz com que um filme nos provoque alguma sensação de realidade? E isto, entenda-se, no sentido mais básico: que faz com que um filme nos leve a reconhecer algo, ou alguma coisa, das nossas experiências individuais e sociais? Pensando na vasta oferta da 17ª edição do Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde, importa lembrar alguns títulos, no mínimo curiosos, por vezes assombrosos, apostados em lidar com tais interrogações. E, por vezes, das formas mais insólitas e desconcertantes.
O português Tony, de Bruno Lourenço, será o mais bizarro desses exemplos. É pena que por ele perpasse esse misto de ligeireza e indiferença que provém em linha directa de algum “humor” de raiz televisiva, apenas interessado no ridículo potencial das figuras humanas. Seja como for, Tony tem o mérito de tocar numa ferida antiga da produção cinematográfica portuguesa: a da dificuldade de convocar o espectador através de referências genuinamente nacionais.
Ora, trata-se de filmar um espectáculo de “karaoke” (em boa verdade, apenas a sua preparação) cujos participantes imitam figuras emblemáticas da tradicional canção portuguesa: Tony de Matos, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, etc. Dir-se-ia que é uma parada de simpáticos “monstros”, enredados nas caricaturas que assumem. Ao mesmo tempo, no artifício em que tudo aquilo acontece, emerge uma verdade que nos remete, de facto, para uma realidade exclusivamente nossa. Esperemos que Tony encontre difusão adequada.
O caso limite visto em Vila do Conde (a meu ver, uma das obras-primas do certame) dá pelo nome de Logorama, desenho animado francês, com assinatura de François Alaux, Hérvé de Crécy e Loudovic Houplain, membros do colectivo H5, um estúdio especializado em infografia e animação digital, responsável por alguns magníficos telediscos de Alex Gopher, Röyksopp, Massive Attack, Goldfrapp, Etienne Daho ou Playgroup [ver clip em baixo].
Nos seus alucinantes 16 minutos, Logorama pode resumir-se como uma típica acção de filme policial, com um bandido à solta nas ruas de Los Angeles, uma perseguição de automóveis, uma situação de reféns e, por fim, um devastador tremor de terra. Seria uma variação mais ou menos conhecida sobre modelos correntes do thriller, não se desse o caso de tudo ser figurado a partir de logótipos publicitários. E quando digo tudo, peço que o leitor entenda que é mesmo tudo, sem excepção: os prédios, os automóveis, os objectos do quotidiano e, por fim, as próprias personagens, não há nada que não seja desenhado a partir de referências explícitas a marcas dos mais variados produtos (companhias de telefones, hiper-mercados, bebidas, jogos de computadores, clubes de vídeo, etc., etc., etc.). Dir-se-ia que percebemos que o nosso mundo existe, todo ele, como uma imensa galáxia de painéis publicitários. E isso, de algum modo, é realista.
Fica, assim, uma lição paradoxal desta semana de cinema em Vila do Conde: até certo ponto, é inevitável reconhecer que o desenvolvimento das bases tecnológicas do cinema tem tanto de fascinante como de artificioso; ao mesmo tempo, esse desenvolvimento gera uma espécie de “nostalgia” de alguma intensidade realista. Como é fácil perceber, são questões cruzadas e incontornáveis de curtas e longas metragens.
>>> Teledisco de Number One (2001), da banda britânica Playgroup — uma criação do estúdio H5.
Que faz com que um filme nos provoque alguma sensação de realidade? E isto, entenda-se, no sentido mais básico: que faz com que um filme nos leve a reconhecer algo, ou alguma coisa, das nossas experiências individuais e sociais? Pensando na vasta oferta da 17ª edição do Festival de Curtas Metragens de Vila do Conde, importa lembrar alguns títulos, no mínimo curiosos, por vezes assombrosos, apostados em lidar com tais interrogações. E, por vezes, das formas mais insólitas e desconcertantes.
O português Tony, de Bruno Lourenço, será o mais bizarro desses exemplos. É pena que por ele perpasse esse misto de ligeireza e indiferença que provém em linha directa de algum “humor” de raiz televisiva, apenas interessado no ridículo potencial das figuras humanas. Seja como for, Tony tem o mérito de tocar numa ferida antiga da produção cinematográfica portuguesa: a da dificuldade de convocar o espectador através de referências genuinamente nacionais.
Ora, trata-se de filmar um espectáculo de “karaoke” (em boa verdade, apenas a sua preparação) cujos participantes imitam figuras emblemáticas da tradicional canção portuguesa: Tony de Matos, Simone de Oliveira, Madalena Iglésias, etc. Dir-se-ia que é uma parada de simpáticos “monstros”, enredados nas caricaturas que assumem. Ao mesmo tempo, no artifício em que tudo aquilo acontece, emerge uma verdade que nos remete, de facto, para uma realidade exclusivamente nossa. Esperemos que Tony encontre difusão adequada.
O caso limite visto em Vila do Conde (a meu ver, uma das obras-primas do certame) dá pelo nome de Logorama, desenho animado francês, com assinatura de François Alaux, Hérvé de Crécy e Loudovic Houplain, membros do colectivo H5, um estúdio especializado em infografia e animação digital, responsável por alguns magníficos telediscos de Alex Gopher, Röyksopp, Massive Attack, Goldfrapp, Etienne Daho ou Playgroup [ver clip em baixo].
Nos seus alucinantes 16 minutos, Logorama pode resumir-se como uma típica acção de filme policial, com um bandido à solta nas ruas de Los Angeles, uma perseguição de automóveis, uma situação de reféns e, por fim, um devastador tremor de terra. Seria uma variação mais ou menos conhecida sobre modelos correntes do thriller, não se desse o caso de tudo ser figurado a partir de logótipos publicitários. E quando digo tudo, peço que o leitor entenda que é mesmo tudo, sem excepção: os prédios, os automóveis, os objectos do quotidiano e, por fim, as próprias personagens, não há nada que não seja desenhado a partir de referências explícitas a marcas dos mais variados produtos (companhias de telefones, hiper-mercados, bebidas, jogos de computadores, clubes de vídeo, etc., etc., etc.). Dir-se-ia que percebemos que o nosso mundo existe, todo ele, como uma imensa galáxia de painéis publicitários. E isso, de algum modo, é realista.
Fica, assim, uma lição paradoxal desta semana de cinema em Vila do Conde: até certo ponto, é inevitável reconhecer que o desenvolvimento das bases tecnológicas do cinema tem tanto de fascinante como de artificioso; ao mesmo tempo, esse desenvolvimento gera uma espécie de “nostalgia” de alguma intensidade realista. Como é fácil perceber, são questões cruzadas e incontornáveis de curtas e longas metragens.
>>> Teledisco de Number One (2001), da banda britânica Playgroup — uma criação do estúdio H5.