quinta-feira, julho 02, 2009

Manuel Pinho: televisivamente (in)correcto

VIDEODROME (1983) de David Cronenberg

1) No plano das linguagens, uma das forças socialmente mais poderosas é o televisivamente correcto — a televisão tende a codificar as palavras e os corpos, criando espaços quotidianos de "justiça", "verdade" e "legitimação". Em plena Assembleia da República, ao fazer um gesto agressivo — simulando um par de chifres, visando Bernardino Soares, líder da bancada do PCP —, o ministro da Economia, Manuel Pinho, assinou a sua sentença de morte política.

2) Não há grandes equívocos: do ponto vista da moral — seja ela política, institucional ou estritamente relacional — Manuel Pinho protagonizou uma cena lamentável. Para além do gravíssimo desrespeito do forum mais importante da democracia, o seu gesto fere o governo (a que, como é óbvio, imediatamente deixou de pertencer), atingindo-o no coração da sua dignidade política e humana.

3) O comportamento sacrificial de Manuel Pinho adquiriu de imediato um peso televisivo que importa descrever. De facto, obedecendo a uma lógica interiorizada de regulador das consciências, a máquina televisiva tende a promover imediatos gestos de purificação (de que os debates com muitas vozes, cruzadas ou sobrepostas, se tornaram o cliché dominante e auto-apaziguador).

4) Na prática, deparamos com isto: no mesmo país em que, quase todos os dias, alguns protagonistas do futebol promovem discussões (?) mais ou menos grosseiras e insultuosas, são os protagonistas da política que se encontram expostos a um escrutínio cuja lógica já não decorre da vida das ideias, mas do imaginário dos apanhados: sem as imagens (e as repetições) televisivas de Manuel Pinho, o seu destino político seria, muito provavelmente, bem diverso.

5) Não se trata, como é óbvio, de negar a importância de termos imagens da Assembleia da República e de a sua circulação ser um dado vital, e adquirido, da nossa democracia. Trata-se, isso sim, de verificar que a vida pública — em particular, a vida das instituições públicas — passou a estar reduzida a um anedotário iconográfico que ameaça todos os políticos, todos os dias e seja qual for a sua filiação partidária. No sistema das linguagens televisivas, que diferença existe entre o repetido espectáculo de um jogador de futebol que deu uma cotovelada noutro e a insistente exposição da triste cena de Manuel Pinho? Nenhuma: trata-se do mesmo modo de ver, e pensar, que nos leva a entender cada ser humano apenas como um potencial infractor das leis da correção televisiva.