De que modo a digitalização das televisões vai alterar factores de difusão e programação, incluindo a noção (ainda) dominante de horário nobre? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Junho), com o título 'A idade digital'.
No dia 12 de Junho, terminaram as emissões analógicas de televisão nos EUA: todo o país passou a estar coberto pela difusão digital. Tendo em conta o poderio económico da indústria audiovisual americana, e também o seu apelo simbólico, isto significa que a idade digital da televisão entrou num período irreversível (mesmo não esquecendo que, segundo dados divulgados pela Nielsen Media Research, há ainda 2,8 milhões de lares que não estão equipados para o novo sistema). Independentemente dos seus recursos específicos e da posição que ocupam no entertainment global, todos os países vão ser afectados por este processo (também em marcha em Portugal).
O que é desconcertante, nos EUA ou em qualquer outro contexto, é o facto de a digitalização da televisão se estar a impor como uma espécie de destino tecnológico, sem que tal desenvolvimento seja acompanhado de uma reflexão profunda sobre padrões e paradigmas das próprias emissões. Entre outras dúvidas que se podem formular, vale a pena repetir a mais básica. A saber: até que ponto (e de que modo) a diferenciação dos produtos, exponenciada pelo digital, vai pôr em causa os modelos tradicionais da televisão generalista?
Porque, repare-se, o que está a acontecer não se reduz a uma mudança de aparelhagens. Em boa verdade, estamos a assistir à lenta decomposição das leis clássicas de conceber e programar televisão, e tanto mais quanto são cada vez mais evidentes os cruzamentos vários entre televisão e computador, espectáculo e informática, pequenos ecrãs e grandes ecrãs.
Lembremos apenas como o digital vai multiplicar a possibilidade (já existente) de cada espectador registar as emissões que quiser, para a elas assistir nos horários que escolher. Na prática, isto significa um abalo fortíssimo no conceito, também ele clássico, de horário nobre. Os seus efeitos poderão sentir-se desde o plano simbólico (o que será uma estrela de televisão quando já não houver horário nobre?) até aos movimentos de capital (como vão evoluir os espaços publicitários e, claro, o seu valor comercial?). “Melhor” ou “pior”, não tenhamos dúvidas que a televisão vai ser muito diferente. Aliás, já agora, usemos o plural: as televisões, se estimarmos o princípio básico da diversidade.