No Festival de Cannes, e de forma algo paradoxal, alguns dos sintomas mais pertinentes da evolução digital do cinema encontraram-se na secção de clássicos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Maio), com o título 'Digital ajuda a redescobrir os clássicos'.
A propósito da passagem da cópia restaurada de Pedro o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, na secção ‘Cannnes Classics’, Serge Toubiana, director da Cinemateca Francesa, lembrou um célebre texto de Louis Aragon fazendo o elogio do filme no momento da sua estreia. Aragon exaltava a relação do cinema moderno com a pintura. E concluía com uma afirmação entusiástica: “Godard é Delacroix”.
Acontece que Pedro o Louco foi rodado no formato Techniscope, criado em 1963 pelo departamento italiano da Technicolor. Com um diferente aproveitamento do negativo (com apenas duas perfurações por fotograma, em vez das tradicionais quatro), o Techniscope visava uma significativa poupança de película, ao mesmo tempo que favorecia um grão na imagem susceptível de criar novas estéticas visuais (foi opção de Sergio Leone, por exemplo, em 1966, em O Bom, o Mau e o Vilão). O Techniscope não desapareceu, mas a sua passagem a outros formatos mais correntes tem dado origem a cópias que nem sempre respeitam os valores cromáticos dos originais. Em Cannes pudemos rever Pedro o Louco como se estivéssemos… em 1965.
A importância de ‘Cannes Classics’ está bem expressa na variedade de nomes este ano evocados, incluindo Luchino Visconti (Senso, 1954), Joseph Losey (Acidente, 1967), e Georges Franju (Les Yeux sans Visage, 1960). Houve até uma cópia de um dos mais políticos “filmes de sketches” dos tempos que antecederam Maio 68: Loin du Vietname (1967), com episódios de Joris Ivens, Jean-Luc Godard e Alain Resnais, entre outros. Como complemento, ‘Cannes Classics’ deu também a ver alguns trabalhos documentais sobre diversos cineastas em momentos específicos da sua evolução: entre os nomes abordados estavam Henri-Georges Clouzot, Pietro Germi, Jean-Luc Godard e François Truffaut (estes dois últimos no período de lançamento da Nova Vaga, através do filme Les Deux de la Vague, de Emmanuel Laurent).
Na maior parte dos casos, as cópias restauradas para formato digital visam o DVD. De facto, o espaço dos “clássicos” já deixou de ser minoritário no mercado, tendo ampliado de forma significativa o número dos seus consumidores. Nalguns casos, essas mesmas cópias serão objecto de reposição nas salas. Quer isto dizer que esta edição de Cannes ajudou a reabrir uma curiosa perspectiva: a de que o processo de digitalização do cinema, actualmente em curso, não diz respeito apenas aos filmes do presente e ao seu possível carácter experimental. O digital está também a criar novas relações, para novos públicos, com a memória viva do cinema.
A propósito da passagem da cópia restaurada de Pedro o Louco (1965), de Jean-Luc Godard, na secção ‘Cannnes Classics’, Serge Toubiana, director da Cinemateca Francesa, lembrou um célebre texto de Louis Aragon fazendo o elogio do filme no momento da sua estreia. Aragon exaltava a relação do cinema moderno com a pintura. E concluía com uma afirmação entusiástica: “Godard é Delacroix”.
Acontece que Pedro o Louco foi rodado no formato Techniscope, criado em 1963 pelo departamento italiano da Technicolor. Com um diferente aproveitamento do negativo (com apenas duas perfurações por fotograma, em vez das tradicionais quatro), o Techniscope visava uma significativa poupança de película, ao mesmo tempo que favorecia um grão na imagem susceptível de criar novas estéticas visuais (foi opção de Sergio Leone, por exemplo, em 1966, em O Bom, o Mau e o Vilão). O Techniscope não desapareceu, mas a sua passagem a outros formatos mais correntes tem dado origem a cópias que nem sempre respeitam os valores cromáticos dos originais. Em Cannes pudemos rever Pedro o Louco como se estivéssemos… em 1965.
A importância de ‘Cannes Classics’ está bem expressa na variedade de nomes este ano evocados, incluindo Luchino Visconti (Senso, 1954), Joseph Losey (Acidente, 1967), e Georges Franju (Les Yeux sans Visage, 1960). Houve até uma cópia de um dos mais políticos “filmes de sketches” dos tempos que antecederam Maio 68: Loin du Vietname (1967), com episódios de Joris Ivens, Jean-Luc Godard e Alain Resnais, entre outros. Como complemento, ‘Cannes Classics’ deu também a ver alguns trabalhos documentais sobre diversos cineastas em momentos específicos da sua evolução: entre os nomes abordados estavam Henri-Georges Clouzot, Pietro Germi, Jean-Luc Godard e François Truffaut (estes dois últimos no período de lançamento da Nova Vaga, através do filme Les Deux de la Vague, de Emmanuel Laurent).
Na maior parte dos casos, as cópias restauradas para formato digital visam o DVD. De facto, o espaço dos “clássicos” já deixou de ser minoritário no mercado, tendo ampliado de forma significativa o número dos seus consumidores. Nalguns casos, essas mesmas cópias serão objecto de reposição nas salas. Quer isto dizer que esta edição de Cannes ajudou a reabrir uma curiosa perspectiva: a de que o processo de digitalização do cinema, actualmente em curso, não diz respeito apenas aos filmes do presente e ao seu possível carácter experimental. O digital está também a criar novas relações, para novos públicos, com a memória viva do cinema.