segunda-feira, abril 20, 2009

Uma tragédia inglesa

Isto É Inglaterra, de Shane Meadows, é o grande acontecimento cine-matográfico do momento. Ou seja: também um bom ponto de partida para lembrarmos as virtudes organizativas do cinema do Reino Unido e, em particular, a sua resistência à normalização televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Abril), com o título 'O cinema britânico e o seu realismo'.

Chegou esta semana às salas portuguesas Isto É Inglaterra, de Shane Meadows, desde já um dos filmes maiores do nosso ano cinematográfico (a respectiva produção é de 2006, mas a estreia no Reino Unido apenas ocorreu em 2008). No seu centro estão as memórias do ano de 1983, com Margaret Thatcher no poder, o envolvimento militar nas Malvinas e, nas ruas, uma presença crescente da extrema-direita. O filme, enraizado em algumas componentes autobiográficas, centra-se na personagem de Shaun (notável composição de Thomas Turgoose), um rapaz de 12 anos marcado pela morte do pai, precisamente nos combates das Malvinas, e que acaba por ser “adoptado” por um grupo de skinheads.
Shane Meadows [foto], também autor do argumento, propõe uma narrativa que conserva as virtudes essenciais do realismo do cinema britânico. Desde logo, uma metódica atenção à conjuntura social e política, às suas convulsões e às ideias que circulam através dos mais pequenos acontecimentos do quotidiano. Depois, uma obsessiva paixão pela complexidade psicológica das personagens: a par de Shaun, o líder dos skinheads, Combo (Stephen Graham), com o seu misto de paixão pela Inglaterra e intolerância pelos “estranhos”, é uma figura de impressionantes contrastes, com raízes visceralmente trágicas. Enfim, Isto É Inglaterra reflecte uma dinâmica cultural que está longe de ser meramente cinematográfica, no sentido em que se apropria de modelos narrativos com raízes noutros domínios, a começar pela tragédia “shakespeareana”: este é, afinal, um grandioso filme sobre o amor e a morte, a violência e o ódio.
Mais do que nunca, importa perguntar de onde vem (ou como se sustenta) esta vitalidade de uma tradição realista que, em boa verdade, se mantém viva e activa desde o trabalho pioneiro de John Grierson, na década de 30. A primeira resposta a tal interrogação envolve tanto a postura social do cinema como a sua estética. Este é um modo de filmar que não se satisfaz com nenhuma forma simplista de “verismo”. Não basta, de facto, pôr os actores a falar com a linguagem da “época” ou vesti-los com peças de um guarda-roupa “natural”. O realismo não é uma arte da “imitação”, mas sim um esforço sistemático, moralmente muito exigente, de compreensão das componentes de um determinado momento histórico: o trabalho realista não se fixa no imediatismo do pitoresco, procurando antes situar as suas personagens num labirinto de dados em que, desde as decisões da cena política até ao intimismo das práticas sexuais, tudo pode ser revelador e pertinente.
Para além do labor específico dos que fazem os filmes, há uma segunda resposta à interrogação formulada. É uma resposta que passa, neces-sariamente, pelas políticas para o audiovisual. E um ponto fundamental dessas políticas é a permanente articulação entre produção cinema-tográfica e produção televisiva (articulação, entenda-se, que não tem nada a ver com a injecção de telefilmes e novelas no espaço do cinema). Isto É Inglaterra foi produzido pelo Film 4, empresa do Channel 4. Ao longo dos anos, o Film 4 esteve ligado a títulos tão diversos como A Minha Bela Lavandaria (1985), Quatro Casamentos e um Funeral (1994), e Trainspotting (1996). O que significa que a televisão é, aqui, uma coisa demasiado séria para ser entregue à mediocridade populista.