É uma ironia que vem a propósito. O cartaz inglês — produzido para a passagem no Festival de Berlim (em Fevereiro passado) — de Singularidades de uma Rapariga Loura é a demonstração simples de que a obra de Manoel de Oliveira tem uma vida para além das dicotomias simplistas que nos enredam entre cinema "autoral" e cinema "comercial" — essa obra existe, tem vida para além das nossas miseráveis guerras internas.
De facto, mais do que nunca, pertenceria à classe política — e às suas políticas culturais — assumir o que todos sabemos há décadas: que tal maniqueísmo só tem servido para agravar conflitos pessoais e institucionais no espaço multifacetado do cinema português, adiando toda e qualquer evolução no sentido de gerar estruturas mais sãs, mais estáveis e que dêem mais hipóteses de trabalho a mais pessoas.
São outras histórias? Sim, sem dúvida. Mas vale a pena lembrar que, se o cinema de Oliveira resiste e persiste, não é porque ele só tenha feito obras-primas, como também não é por causa da sua maravilhosa e respeitável idade. É antes porque Oliveira não abdica de pensar — e sentir, hélas! — o cinema como uma máquina de mara-vilha e espanto, de algumas certezas fulgurantes e muitas dúvidas fascinantes.
E a sua versão do conto de Eça de Queiroz é uma pequena pérola gerada por essa crença simples, mas radical, que leva a encarar o cinema como uma linguagem sempre em aberto. Por um lado, Oliveira transfere a acção para o nosso presente, instalando um delicioso curto-circuito de coincidências e anacronismos; por outro lado, filma o impulso amoroso como a suprema ilusão desta nossa arte muito humana de confundirmos o desejo com a realidade da coisa desejada. Singular ou excêntrico, como quiserem. Em todo o caso, a prova de que o cinema continua a valer a pena, não havendo nenhuma razão, nem artística nem económica, para se entregar à mediocridade reinante da televisão.