terça-feira, abril 14, 2009

Cinema pascal?

Charlton Heston revisto na televisão, em Ben-Hur, pode ser um símbolo do cinema pascal. Mas será que tal conceito, quer na programação, quer na dinâmica cultural e no tecido social, ainda existe? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Abril), com o título 'Cinema, Páscoa e outras crises'.

Sem desprimor para o filme Ben-Hur (1959), de William Wyler, programado pela RTP2 para a noite de sábado, não se pode dizer que as nossas televisões se tenham empenhado muito na programação de cinema para o fim de semana pascal. Na sexta-feira, ao consultar as respectivas programações na Internet, deparei mesmo com o exemplo sintomático da TVI que, para a tarde do domingo de Páscoa, anunciava o seguinte: “14:00, filme a designar; 16:00, filme a designar; 18:00, filme a designar.” Estratégia comercial de sigilo? Legítimo, sem dúvida, mas é um banal conceito de estratégia.
É bem verdade que, ultimamente, nos sábados da RTP2, temos tido alguns magníficos “programas duplos”: no dia 4, por exemplo, foi possível ver Tess (1979), de Roman Polanski, e Anjo ou Demónio (1945), de Otto Preminger, o que só pode trazer saudades de uma atitude genuinamente cineclubista que, noutros tempos, prevaleceu em muitas opções de programação. É por essas opções, aliás, que passam as questões mais fundas. Escusado será repetir que não se trata de reduzir o problema aos filmes “bons” ou “maus” que são apresentados. Trata-se, isso sim, de reconhecer que na cotação interna das televisões (por elas imposta ao colectivo dos espectadores), o cinema se tornou uma alternativa tragicamente secundária ao domínio consentido de novelas, concursos e debates político-futebolísticos.
Em todo o caso, não fará sentido reduzir este declínio simbólico do cinema às suas dimensões especificamente televisivas. Afinal de contas, na semana da Páscoa, nas salas portuguesas, a função de tradicional “filme-de-família” coube a Coração de Tinta, de Iain Softley, banalíssimo prolongamento de uma tendência espectacular (?) imposta pela série “Harry Potter”. Sinal dos tempos: a mais interessante estreia pascal dá pelo nome de Histórias de Cabaret (Go Go Tales no original) e tem assinatura de Abel Ferrara, enfant terrible do cinema independente americano.
No limite, para além da degenerescência das programações televisivas e do esvaziamento conceptual do mercado cinematográfico, estamos confrontados com uma crise de valores sociais e familiares que, sintomaticamente, atinge os tradicionais fluxos consumistas. Quer isto dizer que o problema não tem a ver com a maior ou menor presença de filmes como Ben-Hur para assinalar a data que o calendário regista (à semelhança do inevitável Música no Coração na quadra natalícia). Não podemos reduzir tudo isto a uma questão meramente quantitativa. Vivemos um estado de coisas em que o cinema, já não desempenhando um papel emblemático e aglutinador no mundo do espectáculo, foi encurralado num estatuto de crescente marginalização simbólica em que, pasme-se, ocultar os filmes que se vão apresentar pode ser a marca de uma determinada estratégia... televisiva.
Para a maior parte dos espectadores contemporâneos, sobretudo os que começaram a ver cinema a partir da década de 80, a grandiosidade espectacular associada a filmes como Ben-Hur é qualquer coisa de incompreensível, porventura inexistente. Não admira: agora apenas os vêem no quadradinho do televisor enquanto, nas salas, “Harry Potter” e a sua prole faz figura de modelo da imaginação. Triste imaginação. Pobre imaginário.