sábado, março 07, 2009

Patti Smith e os outros

Na história das relações da música com o cinema, há um capítulo muito particular dedicado ao pop/rock. Mesmo se é verdade que o "filme-concerto" — pelo menos desde o emblemático Woodstock (1970), de Michael Wadleigh — constitui uma espécie de sub-género recheado de tradições, não é menos verdade que há variantes que excedem as suas premissas, não poucas vezes gerando espaços de singular intimidade e intimismo.
Patti Smith: Dream of Life, de Steven Sebring, é um novo e brilhante exemplo de tal tendência: um filme gerado a partir de um convívio de dez anos do realizador com a sua protagonista. Não exactamente para fazer uma "crónica de vida", antes para ir construindo uma verdadeira colagem de momentos soltos, mas cúmplices, uns da mais pura reportagem, outros assumidos como verdadeiras performances em torno da música e dos poemas de Patti Smith.
Daí que este seja um retrato capaz de colocar no mesmo plano a energia de um espectáculo ao vivo e o recolhimento de uma cena familiar. Seja como for, o horizonte ou, se preferirem, o ponto de fuga do filme é sempre a obra, musical & lírica, de Patti Smith, esse sonho vivido cuja possibilidade está, desde logo, relançada no título — Dream of Life, convém lembrar, é o quinto álbum de estúdio de Patti Smith, foi lançado em 1988 e contém o tema emblemático People Have the Power.

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Eis três memórias clássicas de filmes que exploram os limites das relações cinema/música:

* DON'T LOOK BACK / Eu Sou Bob Dylan (1967), de D. A. Pennebaker. Lendário registo da não menos lendária digressão britânica de Bob Dylan, em 1965: por um lado, assistimos às origens mais remotas das incompatibilidades entre Dylan e a sua "imagem pública", em particular nas relações com a imprensa; por outro lado, Pennebaker assume-se como elemento interior do universo retratado, sua personagem e testemunha, registando a respiração particular da música e suas vivências. Entre as personalidades que circulam pelo filme incluem-se Joan Baez, Donovan, Alan Price e Albert Grossman (agente de Dylan).

* ONE + ONE ou SYMPATHY FOR THE DEVIL (1968), de Jean-Luc Godard. Meados de 1968: os Rolling Stones estavam em Londres a gravar o álbum Beggars Banquet. Godard filma uma série de planos-sequência das sessões em torno do tema Sympathy for the Devil, por assim dizer explorando o contraste entre o "conteúdo" (as tentativas e erros do trabalho) e a "forma" (uma câmara que se autonomiza, para construir a sua própria geometria abstracta feita de contemplações e movimentos insólitos); a alternância do estúdio com cenas fortemente teatralizadas, sobre o momento político da contracultura, confere ao filme a dimensão histórica de um bloco-notas sobre os tempos agitados de 1968. Brian Jones está nas imagens, poucos meses antes da sua morte.

* TRUTH OR DARE / Na Cama com Madonna (1991), de Alec Keshishian. Tendo como ponto de partida a Blond Ambition Tour, de 1990, este é um exemplo extremo, porventura extremista, do radical sentido de mise en scène de Madonna. Assim, muito mais do que um registo on the road, deparamos com um exercício de exposição e perversa ocultação em que, num misto de ironia e crueldade, a material girl joga com a sua própria imagem de marca. Elegante e hiper-atenta, a câmara de Keshishian não é um revelador, mas sim um instrumento misterioso cuja acuidade informativa e simbólica Madonna vai discutindo através do seu próprio teatro íntimo — é um ensaio raro e precioso sobre o ser ou não ser (uma estrela pop).