Tempos houve em que a aventura narrada pelo cinema se confundia com a aventura do próprio cinema enquanto trabalho específico. Para nos ficarmos por um exemplo de grandes ressonâncias simbólicas, lembremos o Hatari! (1962), de Howard Hawks: o fascínio da selva africana era indissociável do estar lá do próprio aparato que faz nascer o cinema. Há, ou pode haver, um efeito semelhante nas tarefas de composição de um actor: fundir-se com a sua personagem, a ponto de o olharmos como uma prova física daquilo que está a representar. Assim era com Robert De Niro, em Touro Enraivecido (1980), de Martin Scorsese.
A interpretação de Mickey Rourke em O Wrestler, de Darren Aronovsky, pertence à mesma família estética da de De Niro. E não apenas, nem sobretudo, pela abordagem de desportos marcados por formas muito particulares de violência — o que confere ao filme uma tão peculiar emoção, literalmente à flor da pele, é esse poder primitivo, mas sempre presente, de a relação actor/personagem se expor como um ritual de mútua devoração em que, em boa verdade, não há um "vencedor" e um "vencido", mas se assiste ao nascimento de uma entidade que se confunde com o próprio cinema enquanto matriz de vida.
Não por acaso, Rourke vive/representa uma espécie de derradeira variação sobre as ilusões do American Dream e a sua miragem de redenção individual. Veja-se o espantoso plano final: não sabemos qual é o contracampo daquilo que nos é mostrado e isso deixa-nos uma amarga lição de solidão — da personagem e de nós próprios, espectadores.