Que significa fazer política e ter uma imagem pública? Ou melhor: o que é ter uma imagem política? Vale a pena voltar a analisar o caso do casal Obama — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 de Março), com o título 'Cenas de jardinagem, televisão e política'.
Ao contrário do que pensam os políticos arrivistas, ou apenas inapelavelmente ingénuos, uma boa imagem (pública) não é apenas o resultado de uma pose mais ou menos sedutora, gerida pelo marketing das relações públicas. Em todo o caso, não sejamos mais cínicos que o cinismo que nos vendem: claro que, hoje em dia, não é possível fazer política sem trabalhar cuidadosamente a imagem que se produz, as linguagens que nela se investem e as significações que, a partir daí, se possam gerar. Mas há uma diferença entre a imagem que, por breves instantes, fixa os olhares e a imagem que, para além desse poder instantâneo, consegue ecoar na sensibilidade de quem a contempla.
A fotografia [grande] que ilustra es-te texto, por exemplo. A banalidade feliz da jardinagem que nela se tes-temunha transfigura-se em qualquer coisa de menos banal a partir do momento em que reconhecemos a Primeira Dama dos EUA: Michelle Obama surge com alguns alunos da Bancroft Elementary School, de Washington, a tratar do relvado da zona sul da Casa Branca, junto à respectiva cozinha. Consultando o blog da Casa Branca (é verdade, a Casa Branca tem um blog), ficamos a saber que esta não é uma actividade meramente decorativa. Que é como quem diz: serve para gerar uma determinada imagem, mas não se esgota na sua fabricação. Assim, não se trata exactamente de plantar flores, mas sim vegetais para alimentação: destinam-se a ser utilizados na cozinha da Casa Branca que, por sua vez, os distribuirá à Miriam’s Kitchen, instituição que ajuda os sem abrigo de Washington.
Os mais hipócritas perguntarão em que é que as “couves” de Michelle Obama resolvem as grandes tragédias do mundo contemporâneo? De facto, importa contrapor algo de menos sensacionalista e apenas mais humano (mesmo se é verdade que o nosso sistema mediático vive dominado por um anti-humanismo militante): assistimos, aqui, à valorização de todos os gestos, mesmo os mais microscópicos (é apenas um jardim...), como actos que podem contribuir para alterar e, idealmente, melhorar o funcionamento do nosso mundo.
O próprio Barack Obama deu, esta semana, um excelente exemplo do que pode ser um entendimento das mais altas funções políticas que não se alheie da dinâmica dos media, aceitando jogar o seu jogo de forma aberta e des-complexada. Aconteceu no programa The Tonight Show (NBC), com Jay Leno. Foi uma conversa interessantíssima e, desde logo, por causa de Jay Leno: de facto, apesar de o panorama circundante nos dizer o contrário, ainda há entrevistadores televisivos que não vivem para lançar insinuações torpes aos seus entrevistados ou tentar provocar lapsos anedóticos no seu discurso. Sem recusar o sentido de humor que um programa do género contém (Obama permitiu-se até fazer ironia com as recomendações muito severas dos serviços de segurança sobre as caminhadas que ele pode ou não pode fazer), o Presidente dos EUA e Jay Leno celebraram uma evidência tantas vezes esquecida e, sobretudo, menosprezada. A saber: é possível fazer uma televisão popular, alicerçada em genuínos valores de espectáculo, sem recusar a gravidade dos problemas do nosso presente. E, acima de tudo, tratando o espectador como alguém cuja inteligência não pode, nem deve, ser insultada.