sexta-feira, março 20, 2009

"Che": Parte 1 ou Parte 2?

Chegou, finalmente, aos ecrãs portugueses o fabuloso Che, sobre Che Guevara, dirigido por Steven Soderbergh. Mas será que faz sentido mostrá-lo em duas partes, lançadas com um intervalo de quinze dias? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Março), com o título 'Como filmar uma biografia?'.

Tendo em conta os valores televisivos dominantes, fazer uma biografia esgota-se em duas patéticas convenções: “envelhecer” os actores com cabelos brancos e, depois, proclamar que o biografado teve muitas aventuras secretas, “sexuais” de preferência... Escusado será dizer que o género envolve artifícios de representação e pode jogar com aspectos menos óbvios das memórias. Mas há uma diferença entre o retrato pitoresco e o trabalho biográfico entendido como um exercício paciente e minucioso de caracterização de uma personalidade.
O filme de Steven Soderbergh sobre Che Guevara é um exemplo raro de uma lógica biográfica que, sem menosprezar o factual, nunca escamoteia o peso de uma dúvida filosófica: quanto mais os factos se acumulam, mais sentimos que a identidade individual se fragmenta em certezas e incertezas, coisas transparentes e sombras fantasmáticas. Assim é o Che interpretado por Benicio Del Toro: um ser habitado por silêncios que nos fazem sentir todas as facetas da sua personalidade, incluindo a militância ideológica, como sinais de uma intimidade com tanto de fascinante como de inacessível. Este é, por isso, um filme para repensarmos o próprio trabalho político, tanto mais subtil quanto os seus dois capítulos propõem uma calculada dialéctica: no primeiro, a construção de uma persona revolucionária; no segundo, a sua redução a uma solidão sem alternativa.
Há, por isso, qualquer coisa de bizarro no facto de Che estrear em duas partes (a primeira amanhã, a segunda no dia 2 de Abril). Na verdade, a duração total (superior a quatro horas) é perfeitamente justificada e nada tem a ver com qualquer conceito de “episódios”. O mercado perde, assim, a oportunidade de criar um grande acontecimento público, promovendo o filme na sua genuína dimensão épica. Em duas partes, Che corre o risco de dispersar o público potencial, não podendo ser apreciado na justeza da sua duração e da sua densidade humana.