George C. Scott em Patton, Dennis Hopper em Apocalypse Now: dois símbolos de um contexto, a produção americana dos anos 70, abordado por um belo documentário, agora disponível no mercado português de DVD com o título Uma Década em Revolução — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 de Fevereiro), com o título 'Memórias americanas da década de 70'.
Tenho idade suficiente para me lembrar de escrever textos entusiásticos sobre os primeiros filmes de Steven Spielberg, em particular Tubarão (1975), e ser acusado (por colegas) de estar a “defender o imperialismo americano”. Em boa verdade, não há grande diferença entre esse tipo de acusações e as que, agora, proliferam pela blogosfera acusando a “crítica” em geral de estar “contra” o cinema americano.
Como é óbvio, não é possível lidar com tais manifestações de simplismo no plano do confronto de ideias. Para além de serem discursos incapazes de confronto (embora alimentando sempre o conflito), são também “pontos de vista” sustentados por uma militante ignorância: não conhecem, não leram, não pensaram. E, sobretudo, não pensam. A única coisa que sabem fazer é promover uma qualquer diferença de juízo de valor sobre um filme (fenómeno inevitável e salutar) a “justificação” dos mais torpes insultos e difamações.
Como reagir à persistência de todas as simplificações do pensamento crítico (seja de quem for) e, sobretudo, do próprio cinema (a começar por esse continente imenso, contraditório e fascinante que é o cinema americano)? Por exemplo, chamando a atenção para um magnífico documentário recentemente lançado no mercado português de DVD. Chama-se Uma Década em Revolução (2003), é co-realizado por Richard LaGravanese e Ted Demme, e tem como objecto de análise esse peculiar e, por certo, irrepetível contexto em que a energia renovadora do cinema dos anos 60 (e, afinal, de muitas formas da cultura americana e europeia) se transfigurava em todas as experimentações da década de 70.
A simples lista de entrevistados de Uma Década em Revolução basta para pressentirmos o alcance e, acima de tudo, a pluralidade desse contexto. Nessa lista figuram, por exemplo, os realizadores Robert Altman, Peter Bogdanovich, Francis Ford Coppola, Roger Corman e Martin Scorsese; e ainda actores como Ellen Burstyn, Julie Christie e Jon Voight. Pelas palavras de todos os eles perpassa um sentimento forte: o de que se viviam tempos em que... tudo era possível! O desmantelar da estrutura clássica dos estúdios de Hollywood (a par do crescente peso social da televisão) e o advento de muitas formas de rodagem e narrativa geravam o gosto, prático e teórico, de desafiar os clássicos modelos técnicos e de produção.
Nas palavras de vários entrevistados emerge um nome emblemático da época: John Cassavetes (1929-1989), actor, argumen-tista e realizador que conseguiu a proeza de integrar as novas técnicas ligeiras de rodagem (câmaras mais leves, melhor e mais ágil som directo), preservando uma densidade afectiva que vinha em linha directa da mui nobre tradição do melodrama.
O documentário contém algumas breves imagens de Cassavetes, câmara nas mãos, durante a rodagem de Maridos (1970), um dos seus grandes títulos de introspecção dos espaços conjugais, curiosamente também há poucas semanas editado, entre nós, em DVD. São imagens que nos ajudam a perceber que havia neste cinema uma atenção paradoxal aos elementos mais banais da existência quotidiana. A banalidade era (e é) uma matéria fundamental para lidar com a complexidade das relações humanas.