terça-feira, janeiro 13, 2009

A moral segundo Rohmer

Françoise Fabian — A MINHA NOITE EM CASA DE MAUD (1969)

Através do DVD, podemos (re)descobrir alguns dos títulos marcantes da fase inicial da obra de Eric Rohmer, mais precisamente os seus "Seis Contos Morais" — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (12 de Janeiro).

O mercado cinematográfico do DVD não pára de crescer. E se é verdade que muitos dos seus lançamentos mais interessantes não gozam dos privilégios promocionais conferidos aos títulos que, alguns meses antes, estiveram nas salas, não é menos verdade que a quantidade de “clássicos” tem aumentado de forma significativa.
Agora, com a edição de uma caixa com os “Seis Contos Morais” de Eric Rohmer, podemos redescobrir um capítulo funda-mental do trabalho de um dos nomes grandes da Nova Vaga francesa. Rohmer está normalmente ausente da lista de títulos que ajudaram a afirmar o movimento (pensemos, em particular, no ano decisivo de 1959 e em O Acossado, Hiroshima Meu Amor e Os 400 Golpes, respectivamente de Jean-Luc Godard, Alain Resnais e François Truffaut). O certo é que a consolidação da sua obra é indissociável dessa época, tendo começado estes “Contos” em 1963, com dois filmes de duração inferior a uma hora: A Padeira de Monceau (22 min.) e A Profissão de Suzanne (52 min.).
A ideia de “série” tornar-se-ia frequente na trajectória criativa de Rohmer (lembremos, nos anos 80/90, as “Comédias e Provérbios” e os “Contos das Quatro Estações”). No caso dos “Contos Morais”, tratava-se de percorrer os labirintos das relações amorosas, inventariando os sinais de um erotismo que está, antes de tudo o mais, nas palavras. Há um decisivo momento de consolidação na primeira longa-metragem da série, A Coleccionadora (1966), desembocando na notável trilogia final: A Minha Noite em Casa de Maud (1969), O Joelho de Claire (1970) e O Amor às 3 da Tarde (1972).
Todas as histórias se podem condensar numa mesma premissa: um homem tem uma relação com uma mulher, é atraído por outra e regressa à primeira. A partir desse aparente esquematismo, Rohmer extrai verdadeiros ensaios sobre as atribulações do amor e do sexo, além do mais deixando-nos seis acutilantes crónicas sobre as transformações de usos e costumes na França da década de 60. Isto sem esquecer, claro, algumas notáveis composições de actores como Jean-Claude Brialy (O Joelho de Claire), Françoise Fabian e Jean-Louis Trintignant (A Minha Noite em Casa de Maud), Bernard Verley e Zouzou (O Amor às 3 da Tarde).
Nas capas e nos próprios discos desta edição, o nome de Rohmer surge escrito com um acento agudo (“Éric”), repetindo um erro que, hoje em dia, prolifera um pouco por todo o lado (incluindo nas páginas da Wikipedia). Além do mais, na contracapa da caixa, é incorrecta a informação de que A Minha Noite em Casa de Maud “recebeu o Óscar para melhor argumento de 1969”. Nesse campo, aliás, o filme teve uma trajectória paradoxal, uma vez que foi nomeado para melhor filme estrangeiro nos Óscares referentes à produção de 1969, surgindo entre os nomeados do ano seguinte (já depois da estreia comercial nos EUA), precisamente na categoria de melhor argumento original. Em qualquer dos casos, não foi premiado. Seja como for, estas imprecisões não impedem que reconheçamos “Seis Contos Morais” como um dos acontecimentos marcantes no actual panorama português do DVD.

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Entre os “Seis Contos Morais” de Eric Rohmer, A Minha Noite em Casa de Maud (1969) ocupa um lugar central na história do mercado cinematográfico português. De facto, o filme acabou por ser um dos emblemas de um certo tom “liberal” que marcou a actuação da censura do regime, com Marcello Caetano como sucessor de Salazar.
Estreado em Lisboa, a 20 de Maio de 1970, no cinema Estúdio, pequena sala de “arte e ensaio” integrada no gigantesco edifício do Império, A Minha Noite em Casa de Maud seria um dos vários títulos de realizadores da Nova Vaga francesa a marcar a “Prima-vera marcelista”. Outro exemplo eloquente do mesmo período é À Bout de Souffle/O Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, cuja estreia foi também em 1970, a 30 de Se-tembro, precisamente no cinema Império.
Se nos lembrarmos que o Império era uma sala comercial com mais de mil lugares, podemos sublinhar as curiosas peculiaridades deste contexto. Temos, assim, um exemplo contundente de um cinema experimental, ancorado num universo genuinamente intelectual (Godard, Rohmer e a maior parte dos autores da Nova Vaga exerceram também a crítica de cinema), a estrear numa das maiores e mais populares salas de Lisboa. Como complemento, vale a pena recordar que o último dos “Contos Morais”, O Amor às 3 da Tarde, estreou a 26 de Março de 1973, no cinema Londres, na altura um grande fenómeno de moda, visto como a sala chique, por excelência, da capital.