segunda-feira, janeiro 05, 2009

Jacques Rivette, cineasta da paixão

Foi um dos grandes lançamentos do final de 2008 e, por isso mesmo, um dos grandes filmes do começo de 2009: Não Toquem no Machado, de Jacques Rivette, saíu directamente em DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 de Janeiro), com o título 'Amores de perdição segundo Rivette'.

Longe vai o tempo em que, no mercado português das imagens, o nome de Jacques Rivette era um trunfo forte, respeitado e... conhecido. Afinal de contas, o seu filme A Religiosa (1966), uma das estreias mais emblemáticas do pós-25 de Abril, transformar-se-ia no recordista de permanência nas salas do Quarteto.
Os tempos mudaram, de facto. Desde logo, porque o cinema Quarteto já não existe. Depois, porque Rivette, um dos génios vivos do cinema europeu, é uma referência olimpicamente ignorada pela esmagadora maioria dos que consomem filmes, a começar pelos espectadores mais jovens, (des)educados por alguma publicidade a ir atrás do que tiver campanhas mais ruidosas. Enfim, porque o mais recente filme de Rivette, Não Toquem no Machado [Berlinale 2007] a meu ver um dos melhores que chegaram em 2008 ao mercado português, foi objecto de um discreto lançamento, directamente em DVD, nas derradeiras semanas do ano.
Não Toquem no Machado (título original: Ne Touchez pas la Hache) nasce do continuado fascínio de Rivette pelos texto literários. A Religiosa adaptava Diderot, Hurlevent (1985) inspirava-se em Emily Brontë, A Bela Impertinente (1991) reconvertia para a actualidade uma novela de Balzac. Com Não Toquem no Machado, Rivette reencontra Balzac, mais exactamente o romance La Duchesse de Langeais, centrado na paixão trágica vivida por um general francês, Armand de Montriveau (Guillaume Depardieu), e Antoinette de Langeais (Jeanne Balibar), uma senhora da classe alta. A acção começa em 1823, alguns anos depois desse envolvimento, quando Montriveau redescobre Antoinette, como freira, num mosteiro de Maiorca.
Dizer que a palavra constitui uma matéria fulcral do cinema de Rivette é uma verdade que se arrisca a ser muito simplista. Isto porque ele não filma exactamente cenas “teatrais” em que tudo o resto se reduz a uma função mais ou menos decorativa. Claro que há neste cinema uma assumida e sempre subtil teatralidade, não tendo nada de casual o facto de o mundo dos actores estar tão fortemente representado no trabalho de Rivette: lembremos os exemplos emblemáticos de O Amor Louco (1969), O Bando das Quatro (1988) ou Sabe-se Lá! (2001). Ao mesmo tempo, porém, a palavra está muito longe de ser uma matéria meramente “informativa”: é mesmo um sinal ostensivo, por vezes absolutamente paradoxal, das convulsões mais secretas dos desejos humanos.
Se há um cinema que faz sentido aproximar do trabalho de Rivette é, obviamente, o de Manoel de Oliveira. Ambos encaram a palavra como um instrumento ambivalente, de revelação e ocultação, na perdição amorosa dos seres humanos. Podemos mesmo dizer que há uma subterrânea cumplicidade entre a relação de Rivette com Balzac e o trabalho que Oliveira tem desenvolvido com a escrita de outro autor do século XIX, Camilo Castelo Branco, nomeadamente em Amor de Perdição (1978). Tendo em conta que a classe política portuguesa passou a admirar, sem reticências, a obra de Oliveira, não faltará muito para que Não Toquem no Machado seja recomendado a partir das bancadas da Assembleia da República. Será um evento histórico e comovente.