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Longe vai o tempo em que, no mercado português das imagens, o nome de Jacques Rivette era um trunfo forte, respeitado e... conhecido. Afinal de contas, o seu filme A Religiosa (1966), uma das estreias mais emblemáticas do pós-25 de Abril, transformar-se-ia no recordista de permanência nas salas do Quarteto.
Os tempos mudaram, de facto. Desde logo, porque o cinema Quarteto já não existe. Depois, porque Rivette, um dos génios vivos do cinema europeu, é uma referência olimpicamente ignorada pela esmagadora maioria dos que consomem filmes, a começar pelos espectadores mais jovens, (des)educados por alguma publicidade a ir atrás do que tiver campanhas mais ruidosas. Enfim, porque o mais recente filme de Rivette, Não Toquem no Machado [Berlinale 2007] a meu ver um dos melhores que chegaram em 2008 ao mercado português, foi objecto de um discreto lançamento, directamente em DVD, nas derradeiras semanas do ano.
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Dizer que a palavra constitui uma matéria fulcral do cinema de Rivette é uma verdade que se arrisca a ser muito simplista. Isto porque ele não filma exactamente cenas “teatrais” em que tudo o resto se reduz a uma função mais ou menos decorativa. Claro que há neste cinema uma assumida e sempre subtil teatralidade, não tendo nada de casual o facto de o mundo dos actores estar tão fortemente representado no trabalho de Rivette: lembremos os exemplos emblemáticos de O Amor Louco (1969), O Bando das Quatro (1988) ou Sabe-se Lá! (2001). Ao mesmo tempo, porém, a palavra está muito longe de ser uma matéria meramente “informativa”: é mesmo um sinal ostensivo, por vezes absolutamente paradoxal, das convulsões mais secretas dos desejos humanos.
Se há um cinema que faz sentido aproximar do trabalho de Rivette é, obviamente, o de Manoel de Oliveira. Ambos encaram a palavra como um instrumento ambivalente, de revelação e ocultação, na perdição amorosa dos seres humanos. Podemos mesmo dizer que há uma subterrânea cumplicidade entre a relação de Rivette com Balzac e o trabalho que Oliveira tem desenvolvido com a escrita de outro autor do século XIX, Camilo Castelo Branco, nomeadamente em Amor de Perdição (1978). Tendo em conta que a classe política portuguesa passou a admirar, sem reticências, a obra de Oliveira, não faltará muito para que Não Toquem no Machado seja recomendado a partir das bancadas da Assembleia da República. Será um evento histórico e comovente.