Muitas vezes apontado como símbolo masculino, Clint Eastwood é um subtil retratista das nuances do feminino, como o prova, uma vez mais, a espantosa composição de Angelina Jolie em A Troca — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 de Janeiro), com o título 'Masculino feminino'.
Nos anos 90, na época alta das “comédias adolescentes” que desembocaria em American Pie (1999), muita gente se perguntou se ainda havia espaço para histórias adultas. Estariam os actores condenados a interpretar machos sem outros atributos “psico-lógicos” que não fossem as atribulações hormonais? E as actrizes? Já não haveria personagens para elas, a não ser jovens pouco vestidas e muito estúpidas, ou velhas pitorescas e mais ou menos caquéticas?
Porventura contra a sua própria “imagem de marca”, Clint Eastwood é um espantoso retratista de mulheres, nessa medida tendo proporcionado notáveis composições a algumas grandes actrizes. Se mais não houvesse, o trabalho de Angelina Jolie, em A Troca, bastaria para o ilustrar. Sem recusar um ancestral toque de mistério (que faz lembrar actrizes clássicas como Hedy Lamarr ou Gene Tierney), Angelina Jolie consegue a proeza de criar uma personagem habitada pelas mais terríveis convulsões emocionais que, ao mesmo tempo, funciona como filtro revelador do próprio estatuto da mulher no contexto em que decorre a acção (Los Angeles, anos 20/30).
Eastwood é o cineasta que, em 2004, contra todos os clichés, filmou Hilary Swank, como pugilista, em Million Dollar Baby [cartaz]. Nesse caso, a Warner, estúdio que financiara os seus filmes durante três décadas, achou por bem distanciar-se, considerando o projecto pouco interessante (embora, depois, viesse a assumir a sua distribuição). Foi também ele que, em As Pontes de Madison County, ofereceu a Meryl Streep um dos seus papéis visceralmente românticos. Mesmo quando não ocupam o centro da acção, há actrizes com presenças inesquecíveis na sua filmografia, incluindo Laura Linney (Mystic River, 2003), Diane Venora (Bird, 1988) e Jessica Walter (Destinos nas Trevas, 1971, primeira realização de Eastwood).
Muitas vezes reduzido à “masculinidade” do seu universo, Eastwood é, afinal, um delicado observador da paisagem feminina, das suas nuances e contradições. O exemplo é bem revelador de um vício muito frequente em relação ao trabalho dos nomes mais populares do cinema americano. Que é como quem diz: um conceito que se transforma em preconceito.