quarta-feira, novembro 19, 2008

Em conversa: Carlos do Carmo (1/5)

Iniciamos hoje a publicação da versão integral de uma entrevista com Carlos do Carmo publicada no DN a 17 de Novembro, data que assinala o lançamento da antologia “Fado Maestro”, que celebra os seus 45 anos de carreira.

Chegou a ter planos de futuro que em nada passavam pelo fado. Mas deu por si a estudar para poder trabalhar na indústria hoteleira...
Por vontade do meu pai, à qual respondi com muito gosto. Ele sentia que não ia viver muito tempo. E acertou em cheia. Disse-me: rapaz, não contes com heranças. Aprende o máximo que possas que a herança que te quero deixar é essa.

Em vez de lhe dar peixe, ensinou-o a pescar...
Morreu com 56 anos. E isso mudou-me os planos todos... O que eu tinha muita vontade era ganhar muito dinheiro, de maneira a que os meus pais não fizessem rigorosamente nada. Era esse o meu sonho...

A morte dele obrigou-o a assumir um lugar na casa de fados que tinham.
Aos 21 anos, ali ao lado da minha mãe [a fadista Lucília do Carmo]. Trabalhámos que nem malucos. Era uma grande casa de fados, com sucesso. A profissão foi praticada. Efectivamente a hotelaria foi praticada. Tive uma equipa de trabalho muito coesa, de quem guardo muitas saudades. Era uma equipa. E guardo saudades de alguma clientela. Pessoas que nos habitámos a ver.

A sua mãe trabalhou na casa de fados. Ali cantava regularmente...
Ela estava presente. Mas toda a gestão era minha. Era uma coisa simulada, muito bem feita, entre mim e os empregados... Façam de conta que ela é a dona da casa. E a gente fazia o trabalho...

Apesar de ter uma mãe que cantava via nela as suas mais importantes referências musicais quando começou a criar o seu gosto?
Era muito novo para poder avaliar aquela força de expressão fadista. Era preciso algum saber... Mas a vantagem que eu tinha era o facto de, por um meu pai ser um homem de letras, ensinava-a a dividir os versos. Eu, na infância, assisti a essas sessões.

Na adolescência usa-se a música como forma de expressar rebeldia... Como foi consigo?
Contestando o mais possível. Mas muito apaixonado pelas minhas Sinatradas, pelo Ray Charles, pelo Armstrong, o Miles Davis. Depois começo a entrar na música francesa e na música italiana. Sempre gostei também muito de música brasileira. E gostei sempre muito de ouvir rádio. De ouvir quem cantava. Gostava de aprender através da rádio. Com uma boa entrevista, gente culta a falar de qualquer coisa, bons conversadores. De maneira que esta alma de artista esteve sempre presente. O fado andava ali... Apreciava. Distinguia bem quem cantava e quem tocava... Até porque o meu pai falava mais disso que a minha mãe. O meu pai ensinava. Aliás tenho uma coisa em comum com o meu pai: eu gosto mais de ouvir homens a cantar o fado que mulheres. O meu pai também era assim. De maneira que me habituei a ouvir... A reconhecer as características... As subtilezas...

São experiências que formam...
Sim. Afinal estamos a falar de uma tradição oral. Ouvi tantas pessoas a contar histórias. As histórias do fado! Eles eram já velhinhos naquela altura e estavam a contar histórias do início do século. E eram coisas interessantíssimas. Como é que as coisas funcionavam entre si... E sobretudo aquela coisa de que sempre gostei muito: aquela postura de dignidade. Homens, normalmente artesãos, que chegavam ao fim do dia de trabalho a casa, vestiam o fato e a gravata e iam cantar...

(continua amanhã)