Em 1981, My Life In The Bush Of Ghosts juntou em estúdio, numa aventura comum, David Byrne e Brian Eno, que entretanto tinham já colaborado num trio de álbuns dos Talking Heads gravados entre 1978 e 1980. O disco revelar-se-ia uma das obras mais influentes do seu tempo, propondo novas formas de construção, a exploração de texturas e modos de juntar ingredientes distintos (sobretudo marcas da cultura africana e árabe) num corpo comum. 27 anos depois o par surge com nova colaboração, na melhor tradução da velha máxima “e agora algo completamente diferente”. O álbum de 1981 é aqui invocado apenas por representar o primeiro disco partilhado a dois pelos dois veteranos que agora se reúnem. A ideia nasceu de uma mão cheia de canções inacabadas de Brian Eno, todas elas à espera de palavras e voz. O desafio lançado a Byrne não se limitou a pedir o preenchimento dos espaços em branco, mas também a contribuição activa na construção das ideias musicais. O trabalho, começado em 2006, avançou a passos lentos, cada qual enviando por mail, as suas sugestões. Juntos trabalharam apenas uma semana, traduzindo o disco que agora vemos a soma, de facto, do trabalho distinto de dois ideólogos maiores da pop, reunido sobre o tecto comum de um ciclo de canções. Na base do que agora podemos ouvir mora um interesse antigo de ambos os músicos pelo gospel, assimilado nas formas e temáticas numa música que, na sua forma final, traduz noções com vistas largas do que pode ser uma canção. Apesar de essencialmente dedicado à composição de música instrumental e à produção desde finais da década de 70, Brian Eno não descuida nunca o trabalho na hora de regressar à canção. São notáveis os discos pop que gravou com John Cale em 1990 (Wrong Way Up) e a solo em 2005 (Another Day On Earth). Everything That Happens Will Happen Today não é passo atrás. A voz e as marcas pessoais da presença de David Byrne, as reflexões conjuntas sobre o passar do tempo e o gosto cénico de Eno juntam-se num disco clássico nas formas que revela que os maiores inventores também podem surpreender mesmo sem a necessidade de convocar a revolução. De realmente novo, apenas, a opção pela edição de autor, numa operação bem montada que poderá em breve ter efeitos semelhantes entre outros veteranos.
David Byrne + Brian Eno
“Everything That Happens Will Happen Today”
Ed. Autor
4 / 5
Para ouvir: site oficial
O ano musical português está claramente a revelar a melhor colheita local dos últimos anos. E muitos dos discos que sublinham esse estado da nação não são exactamente “elepês”. Ou seja, à pouco mais de meia dúzia de álbuns que, de facto, estão a escrever a história de 2008, muitas das revelações (e confirmações) sugerem-se através de concertos (de bandas e vozes ainda sem disco) e EPs. Não é por acaso que, até ao fim do ano, alguns dos EPs recentemente editados aqui estão a ser apresentados no Sound + Vision. Mas há alguns que justificam mais que uma simples notícia. Porque, precisamente, são peça fundamental na caracterização da tal “colheita” farta que o ano tem revelado. É o que acontece com o novo EP de b fachada. Quarto, em dois anos de discos gravados (um deles em parceria com Walter Benjamin), Viola Braguesa é a prova provada de que uma ideia herdeira de gostos escutados na melhor folk, já com expressão discográfica portuguesa nos últimos anos, ganha verdadeira e mais viva personalidade ao usar, como língua “oficial” aquela em que sonhamos e, no fundo, contamos histórias. De corpo lo-fi, as sete canções que escutamos no alinhamento de Viola Braguesa são contos que se saboreiam palavra a palavra. A ironia mora nas narrativas, assim como um inteligente sentido de humor nada entre as melodias. Canções simples, na essência, mas que, mesmo sem um corpo de intervenção de instrumentos de linha-da-frente, encontram a sua alma em diálogos para voz, viola, órgão, harmónica, palmas e pouco mais (não esquecendo cestas de molas e um dicionário de neerlandês-francês). Tradição e Faz-me Bem A Mim e Mal ao... (confessa “adulteração” do Fado Religioso de Tiago Guillul) revelam nova expressão de uma consciência fadista que, aos poucos, começa a ganhar forma em alguma da nova música portuguesa. Já Cada um propõe uma narrativa cantada sobre uma distante, e estimulante, repetição de uma frase para teclas. O “folque(lore) muito erudito”, como o próprio descreve a sua música, tem aqui um cartão de visita para fruição intelectual. E não só.
b fachada
"Viola Braguesa"
Flor Caveira / Merzbau
4 / 5
Para ouvir: MySpace
Projecto de um homem só, o norte-americano Owen Ashworth, Casiotone For The Painfully Alone é já um nome com história feita em terreno indie electrónico adubado com mais ideias que orçamentos. Não é caso único! Enquanto não chega novo álbum (agendado para inícios de 2009), eis que entra em cena um EP (edição em CD) com 22 minutos de duração, num alinhamento de... 15 temas! Na verdade pouco de realmente “novo” há por aqui. O conjunto serve, além de arrumação digital da discografia em vinil de 2008, de banda sonora ao filme Stay The Same Never Changes, de Laurel Nakadate... O Town Topic EP não é mais que a soma de dois EPs em vinil lançados já este ano (Town Topic e STSNC Instrumentals) com mais um único inédito (Leslie Gore on the TAMI Show). O EP abre com uma magnífica canção para melancolia com teclas em Ice Cream Truck, mas só reencontra a voz na 15ª e última faixa do disco. Todo o restante alinhamento é feito de instrumentais, alguns deles meras vinhetas, dois inclusivamente apresentados como ringtones. Alguns dos instrumentais são “reflexões” sobre temas antigos. I Love Creedence e Nashville Parthenon revisitam gravações do álbum de 2006 Etiquette. Twinkle Echo (reverse) é um rebobinado do tema-título do álbum de 2003... Na verdade, salvo as canções que abrem e fecham o alinhamento, o EP não oferece mais que a materialização em disco de uma mão cheia de ensaios e experiências. Ou seja, aquelas gravações para fãs, para as quais hoje não há melhor “casa” que um espaço para download (porque não gratuito) no MySpace ou site oficial do músico. Interessante. Mas com sabor a pouco...
Casiotone For The Painfully Alone
“Town Topic EP”
Tomlab / Flur
2 / 5
Para ouvir: MySpace
Com uma obra que soma já mais de dez anos, Matthew Herbert cedo deixou de ser “mais” um visionário estimulado pela house (revelado no magnífico 100lbs) para se afirmar como um dos mais imaginativos e prolíficos conceptualizadores da música dos nossos dias. Com paradigma linguístico definido na obra-prima que foi Bodily Functions (2001), Herbert tem desde então procurado aplicar ferramentas e técnicas semelhantes a novas sugestões narrativas, cénicas e ideológicas. Formalmente uma das maiores novidades da sua obra recente revelou-se em 2003 em Goodbye Swingtime, o primeiro disco que editou com a “sua” Big Band. A aventura é agora retomada em There’s Me and There’s You, álbum que une o trabalho com a Big Band à voz jazzy de Eska Mtungwazi, sob uma ideia que o aproxima das intenções da clássica canção de protesto. Usando ferramentas distintas das que fizeram a obra dos trovadores políticos de 60, Herbert opta antes por uma série de construções “intelectuais” mais próximas da arte conceptual que da canção popular... Pensado para nascer de sons gravados no parlamento britânico (o que lhe foi negado), o álbum usou como plano B uma série de ideias que em nada demoveram Herebert de criar uma reflexão sobre o poder nos nossos dias, seja o da Igreja, da monarquia, da economia ou dos media. Como fontes de som usa elementos de telefonemas de fãs, 70 preservativos arrastados no chão do Museu Britânico, cartões de crédito a ser partidos ou uma marcha perto do parlamento. Este é o seu disco de “intervenção”. Um depoimento político, que contudo só acaba assimilado pelo espectador depois de escutada ou lida uma declaração de intenções que dê sentido real à leitura desta construção artística. E no fim esse é o calcanhar de Aquiles de um álbum mais inovador nos conteúdos que nas formas, mais entusiasmante nas intenções que na sua transformação em canções. O conceptualista continua a surpreender. Mas aqui o músico ficou claramente secundarizado.
Herbert
“There’s Me and There’s You”
K7! / Vortex
2 / 5
Para ouvir: MySpace
Um surto de luxúria orquestral tem caracterizado algumas ideias nascidas em clima pop/rock (alternativo) nos últimos tempos. De um Rufus Wainwright a um Patrick Wolf, dos arranjos de Owen Pallett para os Last Shadow Puppets ao novo ciclo de canções de Simon Bookish, a presença de outros músicos e mesmo orquestras tem enriquecido as cores e tons da música do presente, afinal nada mais fazendo que o retomar de tradições antigas da música popular que passam por nomes como os de Frank Sinatra, Van Dyke Parks, Scott Walker, os Beatles ou, mais recentemente, Divine Comedy ou Björk. Dois anos depois de Safe as Houses, a mais recente incursão indie por territórios de eloquência instrumental chega via Parethetical Girls. O quarteto de Portland propõe em Entanglements um conjunto de canções que não escondem alguma ambição. A voz de Zac Pennington veste personagens (e sugere uma certa dramaticidade), procurando os arranjos servir de molduras aos quadros que se sucedem. Cruzam-se aqui sonhos de uma teatralidade vaudevillesca ou de um dramatismo hollywoodesco... Porém, o apelo orquestral aqui não parece ser mais que um recurso de estilo, que pincela com alguma monotonia uma colecção de canções onde parece haver mais sinais de forma que tutano no conteúdo... Acompanhada por 25 músicos, a banda dá provas de evidente capacidade mutante, o que não surpreende tendo em conta uma obra ainda curta, mas até aqui já capaz de demonstrar o gosto pelo experimentar de novos sabores. Mas os escassos 32 minutos do álbum soam a barriga cheia logo a meio do alinhamento. A ideia é interessante. Mas a concretização revela ingenuidade... E os resultados acabam muito aquém do esperado.
Parenthetical Girls
“Entanglements”
Tomlab / Flur
2 / 5
Para ouvir: MySpace
Também esta semana:
Belle & Sebastian (BBC Sessions), Marc Almond (reedições), Carlos do Carmo, Jorge Palma, Stephen Duffy (reedição)
Brevemente:
24 de Novembro: The Killers, Abba (caixa), Doors (live), Momus, David Fonseca (DVD), Ana Moura (DVD), John Adams (edição nacional), Marc & The Mambas (reedição), Max Richter
1 de Dezembro: Murcof, Motown 50, John Zorn, Johnny Cash (caixa), Klaus Schulze + Lisa Gerrard
8 de Dezembro: Marianne Faithfull, Neil Young (live), The Smiths (caixa), Razorlight, Pavement (reedição) Tke Kinks (caixa) , Isobel Campbell (EP), Mark Kozelek
Dezembro: Dakota Suite, Yelle (remix), Shirley Bassey (reedições), Kanye West, Elvis Presley (reedições)
Janeiro: Franz Ferdinand, Antony & The Johnsons, Animal Collective, FSOL, Benji Hughes