A amostragem de uma bandeira nazi no parlamento da Madeira marcou os últimos dias da cena política portuguesa. A classe política reagiu ao caso como se fosse possível lidar com ele em termos meramente burocráticos e processuais. Por isso, mais do que nunca, importa interrogar as imagens e o que sobre elas (não) dizemos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 de Novembro), sendo os subtítulos criados para esta edição.
1 - Que são as imagens? Como eleitor, sou dos que pensam que a classe política portuguesa tem uma relação demasiado ligeira com o mundo das imagens. Quero eu dizer: com aquilo que as imagens são, com aquilo que fazem e levam a fazer, com o poder que têm, difundem ou limitam. Para além das excepções individuais, é uma classe política que só sabe reflectir, nomeadamente sobre a paisagem televisiva, em termos de regulamentos, vivendo na ilusão de que a vida plural das imagens, logo das suas significações, pode ser “normalizada” pela acção voluntarista da lei.
Estamos a viver um muito triste episódio, sintomático desse estado de coisas. Na sua origem está a lamentável atitude de José Manuel Coelho, deputado do Partido Nova Democracia, que em plena Assembleia Legislativa da Madeira exibiu uma bandeira nazi com o objectivo declarado de a oferecer a Jaime Ramos, presidente da bancada do PSD, ao mesmo tempo que o classificava de “fascista”. Subitamente, o caso enrolou-se numa discussão de suspensões, requerimentos e cenas não muito recomendáveis, sem que se tenha ouvido uma única voz (pelo menos até ao momento que escrevo este texto) a contestar a acusação de “fascismo” lançada contra Jaime Ramos e, por extensão, o governo de Alberto João Jardim.
É aqui, creio, que importa parar um pouco para reflectir. E, sobretudo, para interrogar este vazio de reacções e pensamentos face à utilização de uma imagem muito concreta. A saber: uma imagem que simboliza um dos mais repelentes regimes políticos que a humanidade já gerou.
2 - Memórias da Europa do século XX. Não pretendo, nem de longe nem de perto, sugerir que tenho uma visão privilegiada e “exterior” seja do que for. Ou seja: não nutro qualquer simpatia pelo estilo populista de Alberto João Jardim e não posso deixar de ser sensível ao facto de existirem frequentes testemunhos sobre alegados atropelos ao funcionamento das instituições democráticas na Madeira. Daí a aproximar a governação madeirense do nazismo vai uma distância que, em nome da história da Europa no século XX, me recuso a percorrer.
De facto, o regime que usava a bandeira que foi exibida no parlamento da Madeira deixou um rasto de crimes, devastação e morte cujos efeitos e traumas, mais de seis décadas depois, não se desvaneceram. Foi o nazismo que destruiu países e aniquilou populações, foi o nazismo que programou e construiu Auschwitz e todos os outros campos de concentração, assassinando seis milhões de judeus no Holocausto.
3 - Para não banalizar as imagens. O silêncio ideológico dos membros da classe política face à exibição de uma bandeira nazi num espaço institucional da democracia portuguesa não os torna cúmplices da herança do nazismo, nem autoriza que duvidemos da sinceridade dos seus propósitos democráticos. Mas é de uma ligeireza que roça a irresponsabilidade lidar com factos deste teor como se se tratasse apenas de “fazer aplicar os regulamentos” e, perante a inércia geral, esperar que isso apague a questão.
Viver num mundo tão saturado de imagens envolve responsabilidades muito específicas. Implica, acima de tudo, a disponibilidade moral e a vontade política de não deixar que as imagens se banalizem. E face a uma bandeira nazi é preciso, no mínimo, esclarecer o que a imagem transporta e discutir os modos e as implicações da sua amostragem.