quarta-feira, outubro 15, 2008

Viver e morrer em Nova Iorque

Esta é uma imagem de 1979 e pertence a um espantoso filme de Wim Wenders, Nick's Movie (1980), agora lançado entre nós, em DVD, com o subtítulo Um Acto de Amor. Nele Wenders filma os derradeiros dias de um dos seus mestres clássicos, Nicholas Ray (1911-1979), num exercício que tem tanto de contemplação do trabalho da morte como de afirmação do poder vital do cinema — olhamos para as imagens e tudo aquilo que perdemos está ali, na pura celebração do poder abstracto do cinema.
Nick's Movie faz parte de um vasto conjunto de títulos de Wenders acabados de chegar ao mercado português — o texto seguinte faz o balanço desse lançamento, tendo sido publicado no Diário de Notícias (13 de Outubro), com o título 'Wim Wenders: um cineasta entre a Europa e a América'.

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Entre os autores do moderno cinema alemão, Wim Wenders é, por certo, um dos mais conhecidos. Pode mesmo dizer-se que, desde que arrebatou a Palma de Ouro de Cannes, em 1984, com Paris, Texas, porventura a mais lendária interpretação de Nastassja Kinski, o nome de Wenders passou a ser uma das referências mais internacionais do cinema europeu. A sua popularidade seria consolidada através de As Asas do Desejo (1987), uma comovente fábula sobre a cidade de Berlim e os anjos que a protegem. Além disso, o facto de o seu trabalho se ter desenvolvido através de vários títulos em língua inglesa, incluindo Hammett, Detective Privado (1982), produzido por Francis Ford Coppola, e Até ao Fim do Mundo (1991), uma experiência de ficção científica protagonizada por William Hurt, transformou Wenders em símbolo de uma invulgar versatilidade criativa.
Os quatro filmes citados acabam de ser lançados em DVD, numa verdadei-ra “operação Wenders” cuja raridade importa sublinhar. De facto, além dessas edições individuais, surgiu também uma caixa com nada mais nada menos que nove discos, permitindo-nos percorrer a obra de Wenders desde os tempos heróicos de afirmação do “novo cinema” alemão até algumas experiências mais recentes na área documental.
O título mais antigo, A Letra Escarlate (1973), adaptado do romance de Nathaniel Hawthorne, ilustra um género, o melodrama histórico, que, em boa verdade, acabaria por não ter peso no desenvolvimento do trabalho do autor. Muito mais marcantes são Alice nas Cidades (1974) e Movimento em Falso (1975), magníficos exemplos de uma estética on the road, sintomática da profunda relação de Wenders com toda uma mitologia de raiz americana que desembocaria, precisamente, em Paris, Texas. Aliás, o tema da mãe ausente, vital em Paris, Texas, reflecte-se já em Alice nas Cidades, afinal uma viagem afectiva entre a Alemanha e os EUA.
A relação de Wenders com as mitologias made in USA cristaliza-se em dois títulos fundamentais: O Amigo Americano (1977) e Nick’s Movie (1980). O primeiro, baseado no romance Ripley’s Game, de Patricia Highsmith, nasce do cruzamento de duas linhas criativas: por um lado, uma revisão/homenagem das regras do clássico filme negro americano; por outro, uma reflexão desencantada sobre o valor dos objectos artísticos e, em particular, o poder do mercado. Com Bruno Ganz e Dennis Hopper, o elenco de O Amigo Americano inclui também Nicholas Ray, mestre do cinema clássico de Hollywood que seria, justamente, a figura central de Nick’s Movie.
Os restantes DVD reflectem a importância do olhar documental no trabalho de Wenders. O exemplo mais insólito, Quarto 666 (1982), parte de uma experiência com tanto de irónico como de revelador. Assim, durante o Festival de Cannes de 1982, Wenders montou um pequeno estúdio (no quarto 666 do Hotel Martinez), convidando uma série de cineastas a prestar um depoimento sobre o futuro do cinema. Rainer Werner Fassbinder, Michelangelo Antonioni, Jean-Luc Godard, Steven Spielberg e Werner Herzog são alguns dos entre-vistados, deixando opiniões a que, agora, não podemos deixar de reconhecer um claro valor premonitório.
A caixa inclui ainda Tokyo-Ga (1985), sobre outro mestre, o cineasta japonês Yasujiro Ozu, Notas Sobre Moda e Cidades (1989), dedicado ao trabalho do designer de moda Yohji Yamamoto, e Truque de Luz (1995), filme co-assinado com os estudantes da Academia de Cinema de Munique, divertida evocação dos irmãos Skladanowsky, pioneiros alemães do cinematógrafo.