Estas duas imagens pertencem ao filme Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Na primeira, vemos a nota que Robert De Niro recebe de Harvey Keitel, quando este retira Jodie Foster, à força, do seu taxi (é um plano subjectivo); De Niro não lhe toca e a nota permanece no banco até ao fim do dia. Vêmo-la, na segunda imagem (agora filmada do lado oposto), ainda no banco: antes de De Niro a guardar, a câmara move-se da nota para o seu rosto. Finalmente, na base deste post, temos a mesma nota que regressa (na mão direita de De Niro), quando este tira dinheiro para pagar a um colega: ele fecha a mão direita, guardando a nota isolada, e paga com o dinheiro que tem na esquerda.
São matérias para pontuar uma pergunta: que imagens temos do dinheiro? Ou que imagens não temos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Outubro), com o título 'Será que o dinheiro pode ser mostrado?'.
Com a crise financeira que assola o planeta, mesmo os mais distraídos não poderão deixar de reconhecer um dos princípios viscerais de toda a nossa existência: o da “invisibilidade” do dinheiro. Aliás, em rigor, deveremos falar da sua imaterialidade.
Basta reparar no paradoxo em que estamos instalados: por um lado, todo o nosso mundo é feito de infinitas imagens e, mais do que isso, de infinitos circuitos que as difundem, repetem e multiplicam, emprestando-lhes o poder de uma (quase) divina omnipresença; por outro lado, o dinheiro é aquilo que não se representa através de nenhuma imagem. Mais exactamente: o dinheiro só se dá a ver através dos seus efeitos, sejam eles tecnológicos (os quadros electrónicos das bolsas com muitos números a deslizar), sejam eles dramáticos (as muitas cenas de pose das muitas reuniões de líderes políticos de todas as geografias e culturas).
Este estado de coisas tem um perverso efeito cognitivo: fala-se do dinheiro como se toda a gente soubesse do que se está a falar. Como? Veja-se as diferenças e repare-se na discriminação mediática de vários tipos de saber.
Assim, por exemplo, se se falar da relação da última comédia dos irmãos Coen com a dramaturgia clássica de autores como Howard Hawks, haverá sempre vozes para protestar: “Lá estão os críticos a delirar...” Basta, aliás, chamar a atenção para o facto óbvio de a promoção dos telemóveis favorecer, por vezes, uma visão anedótica do comportamento juvenil; haverá logo quem venha censurar o simples acto de pensar, proclamando: “É só publicidade!” Seja como for, essas são coisas que vemos e podemos discutir. Dito de forma mais específica: são coisas que nos convocam através das imagens.
Passemos, então, para a vida económica. O leitor sabe explicar o que é o nosso querido índice PSI-20? Ou, já agora, o tão perturbado Dow? Ou o distante e exótico Nikkei 225? Não que eu duvide da sua importância, quanto mais não seja porque já percebemos que todos os aspectos da nossa vida estão a ser afectados pelas atribulações de tão nobres entidades. E, no entanto, não só são entidades que escapam à mais forte lei mediática da nossa contemporaneidade (aparecer como imagem), como os telejornais as citam com aquele à vontade de quem está a referir a evidência futebolística da lei do fora de jogo (que, em boa verdade, também não será um exemplo automático de transparência).
A pergunta, ao mesmo tempo iconográfica e cultural, material e simbólica, é esta: será que o dinheiro pode ser mostrado? E, sobretudo: como mostrá-lo?
Face à terrível vertigem financeira em que vivemos, lembro-me sempre de um facto pouco estudado: alguns dos mestres da história do cinema são contundentes retratistas do dinheiro, do modo como os seus poderes se infiltram na carne e no sangue das nossas vidas. Lembro-me, muito concretamente, de Taxi Driver (1976) e das mãos de Robert De Niro filmadas por Martin Scorsese: na imagem, o contraponto entre o dinheiro e a comida faz-nos sentir a terrível proximidade entre a obscenidade da mercadoria e a crueza da sobrevivência. Fica a angústia dos leigos: o que é que os estrategas do PSI-20 (e, já agora, os jornalistas que os comentam) nos têm a dizer sobre isto?
São matérias para pontuar uma pergunta: que imagens temos do dinheiro? Ou que imagens não temos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Outubro), com o título 'Será que o dinheiro pode ser mostrado?'.
Com a crise financeira que assola o planeta, mesmo os mais distraídos não poderão deixar de reconhecer um dos princípios viscerais de toda a nossa existência: o da “invisibilidade” do dinheiro. Aliás, em rigor, deveremos falar da sua imaterialidade.
Basta reparar no paradoxo em que estamos instalados: por um lado, todo o nosso mundo é feito de infinitas imagens e, mais do que isso, de infinitos circuitos que as difundem, repetem e multiplicam, emprestando-lhes o poder de uma (quase) divina omnipresença; por outro lado, o dinheiro é aquilo que não se representa através de nenhuma imagem. Mais exactamente: o dinheiro só se dá a ver através dos seus efeitos, sejam eles tecnológicos (os quadros electrónicos das bolsas com muitos números a deslizar), sejam eles dramáticos (as muitas cenas de pose das muitas reuniões de líderes políticos de todas as geografias e culturas).
Este estado de coisas tem um perverso efeito cognitivo: fala-se do dinheiro como se toda a gente soubesse do que se está a falar. Como? Veja-se as diferenças e repare-se na discriminação mediática de vários tipos de saber.
Assim, por exemplo, se se falar da relação da última comédia dos irmãos Coen com a dramaturgia clássica de autores como Howard Hawks, haverá sempre vozes para protestar: “Lá estão os críticos a delirar...” Basta, aliás, chamar a atenção para o facto óbvio de a promoção dos telemóveis favorecer, por vezes, uma visão anedótica do comportamento juvenil; haverá logo quem venha censurar o simples acto de pensar, proclamando: “É só publicidade!” Seja como for, essas são coisas que vemos e podemos discutir. Dito de forma mais específica: são coisas que nos convocam através das imagens.
Passemos, então, para a vida económica. O leitor sabe explicar o que é o nosso querido índice PSI-20? Ou, já agora, o tão perturbado Dow? Ou o distante e exótico Nikkei 225? Não que eu duvide da sua importância, quanto mais não seja porque já percebemos que todos os aspectos da nossa vida estão a ser afectados pelas atribulações de tão nobres entidades. E, no entanto, não só são entidades que escapam à mais forte lei mediática da nossa contemporaneidade (aparecer como imagem), como os telejornais as citam com aquele à vontade de quem está a referir a evidência futebolística da lei do fora de jogo (que, em boa verdade, também não será um exemplo automático de transparência).
A pergunta, ao mesmo tempo iconográfica e cultural, material e simbólica, é esta: será que o dinheiro pode ser mostrado? E, sobretudo: como mostrá-lo?
Face à terrível vertigem financeira em que vivemos, lembro-me sempre de um facto pouco estudado: alguns dos mestres da história do cinema são contundentes retratistas do dinheiro, do modo como os seus poderes se infiltram na carne e no sangue das nossas vidas. Lembro-me, muito concretamente, de Taxi Driver (1976) e das mãos de Robert De Niro filmadas por Martin Scorsese: na imagem, o contraponto entre o dinheiro e a comida faz-nos sentir a terrível proximidade entre a obscenidade da mercadoria e a crueza da sobrevivência. Fica a angústia dos leigos: o que é que os estrategas do PSI-20 (e, já agora, os jornalistas que os comentam) nos têm a dizer sobre isto?