domingo, setembro 28, 2008

Resistir é vencer

Clássicos do século XX - 3
'Sinfonia Nº 7', de Dmitri Shostakovich
(1941)

Pode uma obra ser entendida com sentidos quase opostos? Pode, naturalmente. E um dos melhores exemplos desta aparente “contradição” pode ser encontrado na Sinfonia Nº 7 (habitualmente apresentada com o sub-título Leningrado) de Dmitri Shostakovich (1906-1975). Estreada em Março de 1942, numa Rússia sob cerrada invasão alemã, a sinfonia foi elogiada pelo Pravda e, logo, adoptada pelo regime, como um acto de patriotismo e um canto de resistência. Contudo, mais tarde veio a saber-se que, como de resto faria em outras obras suas, o compositor na verdade tanto reflectia aqui sobre a agressão alemã como sobre a repressão despótica da Rússia de Estaline. A sinfonia está disponível no mercado em diversas gravações. Uma delas representa uma gravação de 1988 pela Chicago Symphony Orchestra, sob direcção de Leonard Bernstein, um dos maestros ocidentais que mais divulgou a obra do compositor russo.

Disse, durante anos, o mito oficial, que Shostakovich teria começado a compor a sua sétima sinfonia sob o cerco de Leninegrado, onde então residia com a sua família. Testemunhos entretanto descobertos confirmam que, na verdade, havia já esboços de ideias e mesmo de um andamento, antes de chegado o exército alemão. Sabe-se, contudo, que muito do trabalho de composição avançou sob o bombardeamento da cidade, frequentemente o compositor tendo interrompido o trabalho para se refugiar, com a família, em abrigos. A dada altura, com o trabalho a meio, Shostakovich passou pelos microfones da rádio da cidade, para dar conta do trabalho em curso, numa breve declaração que dava conta de uma cidade que, mesmo sob bombardeamentos, continuava a trabalhar... Esta acção, entre outras mais, foram mediatizadas como sinal de patriotismo (algo caro ao ideário de Estaline) e de colaboração de um artista no esforço de guerra, chegando mesmo o compositor a surgir retratado como bombeiro, numa capa da Time. O trabalho da sinfonia, na verdade, seria concluído depois da família do compositor ter abandonado a cidade. A esta, contudo, dedicando depois a obra.

Longa, de resto a mais longa das sinfonias do compositor (habitualmente apresentada em versões que ultrapassam em pouco os 70 minutos), esta é uma obra que o tempo encarou de diversas formas. Ecoando heranças de Mahler e Stravinsky, apostando em sugestões cénicas (e não na construção de uma teia narrativa), ilustra marcas da identidade dos oprimidos através de claras alusões a tradições da música russa, sugerindo depois a violência da repressão que implacavelmente sobre eles se abate num adagio que sugere as intenções de um um requiem onde se retratam as ruas desoladas de uma cidade devastada.
Usada durante anos como peça de propaganda, a Sinfonia Nº 7 perdeu alguma visibilidade com o afastamento progressivo das memórias da guerra. Nos últimos anos, a sua identificação como, mais que apenas um grito de resistência ao invasor, uma reflexão sobre a vida sombria de uma Rússia sob o poder absoluto de Estaline, devolveu-a aos programas das orquestras e aos discos. Hoje é vista como um corajoso canto de resistência contra o poder de déspotas e tiranos.



Na imagem, um excerto do segundo andamento da sinfonia, numa interpretação da japonesa NHK Symphony Orchestra, dirigida pelo russo Valery Gergiev.