Afinal, quando regressamos à escrita do Islão, o que é possível ler sobre as relações entre religião e homossexualidade? Apresentado na secção documental do Queer Lisboa 12, A Jihad for Love, de Parvez Sharma [repete terça-feira, às 15h30], é uma espantosa (re)for-mulação dessa pergunta. Sem maniqueísmos morais, religiosos ou ideológicos — e também sem rasurar tudo o que de incómodo ou perturbante a questão necessariamente desencadeia — este é um filme capaz de devolver ao modelo do documentário político as suas cartas de nobreza. Que é como quem diz: mesmo na sua formulação mais simples e também mais radical — a do direito de cada indivíduo à diferença, seja ela qual for, da sua identidade sexual — A Jihad for Love é um filme imbuído dessa imensa capacidade de olhar a pluralidade do mundo sem a encerrar em nenhum mani-queísmo panfletário.
Há no filme um sinal, eminen-temente cinematográfico, e tam-bém do mais puro dramatismo, que importa reter. Assim, para evitar qualquer tipo de perseguição a algumas das pessoas que dão o seu testemunho (até mesmo algumas que apenas aparecem em fotografias), vários rostos de A Jihad for Love foram tratados por aquele processo técnico que permite sobrepor-lhes uma espécie de névoa que torna impossível o seu reconhecimento. Se dúvidas houvesse sobre o que está em jogo, semelhante detalhe técnico bastaria: essas pessoas arriscam não apenas as condições materiais da sua existência mas também, sem qualquer ambiguidade, a própria vida. Esse é também um sinal que resume o projecto político do filme: escolher o desejo de viver, e amar, contra tudo aquilo que pactua com o abismo da morte.
Está implícito, mas será importante explicitar: este é um filme que importa ver e dar a ver, divulgar, analisar e discutir. Será que o mercado cinematográfico o vai mostrar? E as televisões portu-guesas? E, em particular, a televisão pública? Não terão uma palavra a dizer, em nome do seu papel formador e, mais do que isso, na defesa dos direitos humanos?
O cartaz do filme é exemplar no modo como resume o que está em jogo: afinal de contas, não se trata de pôr em causa nenhum símbolo, mas de criar condições para que as silhuetas a negro possam ter um rosto e uma identidade.