
A memória de Andrei Tarkovski (1932-1986) adquiriu mais um precioso objecto. Numa edição conjunta da Fundação Tarkovski (Florença) e da Galeria White Space (Londres), foi publicado o álbum Bright, Bright Day, antologia das fotografias polaroid que o cineasta russo fez ao longo de vários anos, sobretudo no período em que, em Itália, preparou a rodagem de Nostalgia (1983), sua penúltima longa-metragem.

Sabemos que essa foi uma época especialmente dolorosa na existência de Tarkovski. Na sequência de muitos problemas com as autoridades soviéticas, com sucessivos entraves postos à possibilidade de a sua família viajar para fora do país, a produtora estatal Mosfilm retirara-se do projecto de Nostalgia. Em grande parte graças ao empenho de Tonino Guerra, o filme acabaria por montar-se através do financiamento da televisão italiana, RAI.
A fascinante ambivalência de tudo isto está nas polaroids de Tarkovski (e, obviamente, no próprio filme): ele registava nas imagens de Itália o eco da sua pátria. O seu filho sublinha-o de forma eloquente: “(...) procurava obsessivamente paisagens reminiscentes da Rússia, dos lugares da sua infância, lugares que não voltaria a ver.” De facto, em 1984, durante a preparação daquele que seria o seu derradeiro filme, O Sacrifício (1986), Tarkovski anunciou que nunca mais regressaria à União Soviética.

Num mundo tão atraído pelos rituais religiosos, mas tão pouco disponível para as inquietações do sagrado, a herança de Andrei Tarkovski adquire um redobrado valor. E isto, repare-se, sobretudo porque a vitalidade da sua obra impede que o encerremos numa determinada “crença”, muito menos que o reduzamos a uma qualquer “prática”. Como muito bem referiu Bergman, Tarkovski exprime-se no coração de um paradoxo que faz, afinal, a maravilha primordial do cinema como linguagem e também como experiência existencial. Raros filmes são tão directos e tão realistas como os de Tarkovski na sua consciência da matéria, da delicadeza de uma pele ou da complexidade de uma flor; ao mesmo tempo, o seu cinema remete-nos para uma dimensão que, se não é divina, apela à pudica suspensão da palavra humana. Como num espelho ao qual pedíssemos o eco do nosso frágil pensamento.