Digamos que é um filme em que tudo se lê à flor da pele: as emoções e a incomunicabilidade, a fragilidade da vida e a nitidez irrevogável da morte — Gomorra, retrato interior do crime orga-nizado na região de Nápoles, representa o glorioso reencontro de algumas das mais genuínas componentes da grande tradição cinematográfica de Itália.
Por um lado, deparamos com a minúcia clínica de um realismo que, sem desdenhar a herança histórica do neo-realismo, há muito superou o seu imaginário poético; por outro lado, a utilização de actores não profissionais traduz uma opção estética estranha a qualquer redenção pelo glamour, ao mesmo tempo que mantém uma relação directa e, por assim dizer, física com a verdade existencial do povo.
Foi especialmente importante que Gomorra tivesse obtido o Grande Prémio em Cannes. O mais prestigiado festival de cinema do mundo consagrava, assim, sete anos passados sobre a Palma de Ouro de Nanni Moretti (O Quarto do Filho), um cinema italiano que tem sabido resistir à pressão normativa da televisão e, em particular, ao seu desenfreado populismo. Adaptando o livro homónimo de Roberto Saviano (já disponível em tradução portuguesa), o realizador Matteo Garrone propõe-nos, afinal, uma equação perturbante: o pulsar de uma realidade que se confunde com o assombrado labirinto da tragédia.