Chegou às salas de cinema Before the Devil Knows You're Dead / Antes que o Diabo Saiba que Morreste, espantoso drama familiar com assinatura do veterano Sidney Lumet — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Setembro), com o título 'Uma tragédia sobre o Céu protagonizada pelo Diabo'.
Para além das inevitáveis e salutares diferenças de opinião que qualquer filme pode suscitar, creio que se discute muito pouco o modo como as tendências dominantes do mercado passaram a enquadrar os produtos cinematográficos. Veja-se o caso de Antes que o Diabo Saiba que Morreste, prodigioso filme do veterano Sidney Lumet agora chegado discretamente às salas de cinema (ainda bem que chegou e não teve a “sorte” de ir directamente para DVD). É bem certo que nele se reúnem quatro actores profusamente nomeados para os Óscares: Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Marisa Tomei e Albert Finney [foto] (Hoffman e Tomei já ganharam: ele melhor actor, ela melhor actriz secundária, respectivamente em Capote e O Meu Primo Vinny). Mas será que um objecto com tanta gente ilustre tem a evidência pública que merece?
Que é, então, este produto? Digamos que é o exacto oposto desses filmes com 573 explosões por minuto e muitos efeitos especiais que (ainda) aparecem nos telejornais... Não que não se façam muitos filmes extraordinários que nascem de uma tecnologia cada vez mais sofisticada. O problema não está aí. Acontece que o cinema não se reduz ao último blockbuster que consegue ocupar os ecrãs do mundo inteiro. Acontece, em particular, que o cinema americano é uma frondosa árvore criativa com mais de um século de história e um património narrativo riquíssimo e multifacetado que não se esgota nos elegantes movimentos digitais da capa de Batman ou nos voos mais ou menos acrobáticos de qualquer super-herói em aguda crise existencial.
Nostalgia? De maneira nenhuma. Trata-se apenas de não esquecer que a requintadíssima arte de Sidney Lumet vem em linha directa do cinema clássico, em particular dessas zonas fascinantes em que o género policial se cruza com as regras do melodrama ou, mais radicalmente, as pulsões próprias da tragédia. Basta ver ou rever a sua filmografia para o compreendermos. Para nos ficarmos por um exemplo modelar, recordemos a obra-prima Running on Empty / Fuga sem Fim (1988), singularíssimo drama familiar que tem River Phoenix naquela que é, muito provavelmente, a mais espantosa interpretação da sua curta existência.
Antes que o Diabo Saiba que Morreste colhe o seu título num provérbio de origem irlandesa, qualquer coisa como: “Que possas estar no Céu uma boa meia hora antes que o Diabo saiba que morreste.” Afinal de contas, esta é uma história de personagens que, na sua procura de um Bem mais ou menos idealizado, acabam por atrair as forças de um Mal que não dá tréguas. Ou ainda, e para sermos mais específicos: aqui se conta a história de dois irmãos que, face aos muitos impasses financeiros e afectivos das suas vidas, decidem assaltar a ourivesaria... dos próprios pais!
Digamos, para simplificar, que Lumet é um cineasta da ambivalência dos comportamentos, logo da fragilidade da moral com que vemos (ou tentamos corrigir) o mundo. Ele filma as contradições das formas de organização social e familiar, descobrindo, para além de todas as máscaras, a devastada vulnerabilidade do género humano. Não será um cinema diabólico, mas é bem verdade que o Diabo tem sempre lugar no elenco.
Para além das inevitáveis e salutares diferenças de opinião que qualquer filme pode suscitar, creio que se discute muito pouco o modo como as tendências dominantes do mercado passaram a enquadrar os produtos cinematográficos. Veja-se o caso de Antes que o Diabo Saiba que Morreste, prodigioso filme do veterano Sidney Lumet agora chegado discretamente às salas de cinema (ainda bem que chegou e não teve a “sorte” de ir directamente para DVD). É bem certo que nele se reúnem quatro actores profusamente nomeados para os Óscares: Philip Seymour Hoffman, Ethan Hawke, Marisa Tomei e Albert Finney [foto] (Hoffman e Tomei já ganharam: ele melhor actor, ela melhor actriz secundária, respectivamente em Capote e O Meu Primo Vinny). Mas será que um objecto com tanta gente ilustre tem a evidência pública que merece?
Que é, então, este produto? Digamos que é o exacto oposto desses filmes com 573 explosões por minuto e muitos efeitos especiais que (ainda) aparecem nos telejornais... Não que não se façam muitos filmes extraordinários que nascem de uma tecnologia cada vez mais sofisticada. O problema não está aí. Acontece que o cinema não se reduz ao último blockbuster que consegue ocupar os ecrãs do mundo inteiro. Acontece, em particular, que o cinema americano é uma frondosa árvore criativa com mais de um século de história e um património narrativo riquíssimo e multifacetado que não se esgota nos elegantes movimentos digitais da capa de Batman ou nos voos mais ou menos acrobáticos de qualquer super-herói em aguda crise existencial.
Nostalgia? De maneira nenhuma. Trata-se apenas de não esquecer que a requintadíssima arte de Sidney Lumet vem em linha directa do cinema clássico, em particular dessas zonas fascinantes em que o género policial se cruza com as regras do melodrama ou, mais radicalmente, as pulsões próprias da tragédia. Basta ver ou rever a sua filmografia para o compreendermos. Para nos ficarmos por um exemplo modelar, recordemos a obra-prima Running on Empty / Fuga sem Fim (1988), singularíssimo drama familiar que tem River Phoenix naquela que é, muito provavelmente, a mais espantosa interpretação da sua curta existência.
Antes que o Diabo Saiba que Morreste colhe o seu título num provérbio de origem irlandesa, qualquer coisa como: “Que possas estar no Céu uma boa meia hora antes que o Diabo saiba que morreste.” Afinal de contas, esta é uma história de personagens que, na sua procura de um Bem mais ou menos idealizado, acabam por atrair as forças de um Mal que não dá tréguas. Ou ainda, e para sermos mais específicos: aqui se conta a história de dois irmãos que, face aos muitos impasses financeiros e afectivos das suas vidas, decidem assaltar a ourivesaria... dos próprios pais!
Digamos, para simplificar, que Lumet é um cineasta da ambivalência dos comportamentos, logo da fragilidade da moral com que vemos (ou tentamos corrigir) o mundo. Ele filma as contradições das formas de organização social e familiar, descobrindo, para além de todas as máscaras, a devastada vulnerabilidade do género humano. Não será um cinema diabólico, mas é bem verdade que o Diabo tem sempre lugar no elenco.