Esta é uma imagem do génerico de Vertigo: o nome de Alfred Hitchcock (1899-1980) é, de uma só vez, uma inspiração e um assombramento. Conhecê-lo ajuda-nos a relativizar o nosso olhar e também algum cinema contemporâneo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Setembro), com o título 'Com saudades de Alfred Hitchcock'.
Em 2005, Angelina Jolie e Brad Pitt protagonizaram um remake de uma comédia realizada por Alfred Hitchcock em 1941: a cópia chamava-se, tal como o original, Mr. & Mrs. Smith. Não quero legitimar as vulgaridades mediáticas que o casal de actores costuma atrair (até porque sou grande admirador de ambos), mas o filme era, de facto, um absoluto disparate. E tinha uma gaffe de que nunca me esqueci. Toda a sua promoção se baseava numa informação muito precisa: Jolie e Pitt interpretam assassinos profissionais, até que, um dia, cada um deles recebe a missão de matar o outro. Ora, apesar de todos os trailers e textos sobre o filme nos dizerem isso mesmo, dentro do próprio filme tal informação surgia já depois de uma boa hora de duração e era apresentada como... uma novidade de grande dramatismo!
Lembrei-me disto ao ler um belo artigo sobre a arte de Hitchcock, da autoria do escritor Jonathan Coe, publicado no Sunday Times (dia 7). Coe começa por traçar um retrato psicanalítico do autor de Os Pássaros, demonstrando como toda a sua obra é indissociável de uma fortíssima pulsão sádica. Conhecemos um pouco do seu enraizamento no universo hiper-conservador de onde provém Hitchcock (lembremos o clássico livro-entrevista do realizador com o seu discípulo francês, François Truffaut, ou ainda a biografia escrita por Donald Spoto). Em termos narrativos, tal pulsão revela-se através do jogo de suspense em que o espectador se vê envolvido. Que é como quem diz: o espectador é seduzido por aquilo que sabe e as personagens ignoram; quase inevitavelmente, o espectador será “castigado” por aquilo que o seu saber não pode antecipar.
Um dos aspectos mais estimulantes do texto de Coe tem a ver com a inspiração mais remota da mise en scène de Hitchcock. Assim, mesmo se é verdade que ele sempre foi um criador atento às convulsões técnicas, o certo é que o essencial do dispositivo “hitchcockiano” provém dos tempos heróicos do cinema mudo e, em particular, de uma necessidade vital: a de fazer passar informações e emoções, certezas e dúvidas, apenas através das imagens.
Entre muitos exemplos possíveis desse equilíbrio instável entre o que se mostra e o que se esconde, Coe recorda os espantosos minutos de Vertigo (1958) em que James Stewart, ao volante do seu carro, segue Kim Novak através do labirinto de subidas e descidas das ruas de São Francisco. Escreve ele, com calculada ironia, que “não acontece grande coisa”. O certo é que a alternância entre Stewart e aquilo que ele vê, tudo envolvido na assombrada música de Bernard Herrmann, gera algo que é essencial à eficácia e, mais do que isso, ao prazer cinematográfico. A saber: a duração.
Hoje em dia, muitos filmes (e também muitas formas de jornalismo, há que reconhecê-lo) menosprezam a questão da duração na relação do espectador com os filmes. Há mesmo uma ideologia corrente, preguiçosa e infantilista, que tenta impor uma visão bruta do cinema: muitas explosões e muitos efeitos especiais seriam “sempre” sinónimo de grande espectáculo... Uma tristeza, enfim: muitas vezes o exibicionismo da técnica não passa de uma agitação histérica para fingir que acontece alguma coisa. Hitchcock, decididamente, faz-nos falta. Vejam os DVD.
Em 2005, Angelina Jolie e Brad Pitt protagonizaram um remake de uma comédia realizada por Alfred Hitchcock em 1941: a cópia chamava-se, tal como o original, Mr. & Mrs. Smith. Não quero legitimar as vulgaridades mediáticas que o casal de actores costuma atrair (até porque sou grande admirador de ambos), mas o filme era, de facto, um absoluto disparate. E tinha uma gaffe de que nunca me esqueci. Toda a sua promoção se baseava numa informação muito precisa: Jolie e Pitt interpretam assassinos profissionais, até que, um dia, cada um deles recebe a missão de matar o outro. Ora, apesar de todos os trailers e textos sobre o filme nos dizerem isso mesmo, dentro do próprio filme tal informação surgia já depois de uma boa hora de duração e era apresentada como... uma novidade de grande dramatismo!
Lembrei-me disto ao ler um belo artigo sobre a arte de Hitchcock, da autoria do escritor Jonathan Coe, publicado no Sunday Times (dia 7). Coe começa por traçar um retrato psicanalítico do autor de Os Pássaros, demonstrando como toda a sua obra é indissociável de uma fortíssima pulsão sádica. Conhecemos um pouco do seu enraizamento no universo hiper-conservador de onde provém Hitchcock (lembremos o clássico livro-entrevista do realizador com o seu discípulo francês, François Truffaut, ou ainda a biografia escrita por Donald Spoto). Em termos narrativos, tal pulsão revela-se através do jogo de suspense em que o espectador se vê envolvido. Que é como quem diz: o espectador é seduzido por aquilo que sabe e as personagens ignoram; quase inevitavelmente, o espectador será “castigado” por aquilo que o seu saber não pode antecipar.
Um dos aspectos mais estimulantes do texto de Coe tem a ver com a inspiração mais remota da mise en scène de Hitchcock. Assim, mesmo se é verdade que ele sempre foi um criador atento às convulsões técnicas, o certo é que o essencial do dispositivo “hitchcockiano” provém dos tempos heróicos do cinema mudo e, em particular, de uma necessidade vital: a de fazer passar informações e emoções, certezas e dúvidas, apenas através das imagens.
Entre muitos exemplos possíveis desse equilíbrio instável entre o que se mostra e o que se esconde, Coe recorda os espantosos minutos de Vertigo (1958) em que James Stewart, ao volante do seu carro, segue Kim Novak através do labirinto de subidas e descidas das ruas de São Francisco. Escreve ele, com calculada ironia, que “não acontece grande coisa”. O certo é que a alternância entre Stewart e aquilo que ele vê, tudo envolvido na assombrada música de Bernard Herrmann, gera algo que é essencial à eficácia e, mais do que isso, ao prazer cinematográfico. A saber: a duração.
Hoje em dia, muitos filmes (e também muitas formas de jornalismo, há que reconhecê-lo) menosprezam a questão da duração na relação do espectador com os filmes. Há mesmo uma ideologia corrente, preguiçosa e infantilista, que tenta impor uma visão bruta do cinema: muitas explosões e muitos efeitos especiais seriam “sempre” sinónimo de grande espectáculo... Uma tristeza, enfim: muitas vezes o exibicionismo da técnica não passa de uma agitação histérica para fingir que acontece alguma coisa. Hitchcock, decididamente, faz-nos falta. Vejam os DVD.