Apesar de vivermos num tempo em que, pelo fluir livre e rápido da informação, a noção de barreiras de género não mais condiciona a construção de caminhos nos mais diversos azimutes da criação musical, muitas são as estreias que vemos nascer sob a quase necessidade de tomar por direcção um espaço definido, uma herança concreta ou um neo-qualquer-coisa como bandeira (por vezes mesmo como caução). Muitas das “revelações” dos últimos tempos brotam do silêncio para se afirmar como discípulos dos Animal Collective ou dos Beach Boys, da Joy Division ou de uns New Order... E por aí adiante. Nada de errado, que se evocam grandes referências. Porém, e mesmo sob ocasionais momentos de iluminação na escrita, gerando mesmo eventuais álbuns irresistíveis, o sabor da surpresa não tem morado frequentemente nestas estreias... Daí que, mesmo sendo autores de um álbum sem argumentos para lutar pelo título de ‘disco do ano’, os Late Of The Pier se apresentem como uma das mais revigorantes revelações que a pop nos deu no último ano. Ainda por cima com passaporte inglês, coisa rara num tempo em que as patentes das melhores “invenções” pop/rock têm regularmente chegado de outras paragens. Infinitamente mais interessantes que as promessas incompletas de muitos outros talentos jovens que os últimos tempos viram nascer (ler Klaxons, Hadouken! e afins), este quarteto, oriundo de Castle Donnington, foi construindo personalidade e desbravando terreno em singles editados em pequenas independentes. Fantasy Black Channel, o álbum, confirma agora que a coexistência de referências tão dispares, todavia bem resolvidas em canções de boa carpintaria de estúdio, reveladas nesses singles, não eram erupção acidental de acasos, mas antes episódios de construção de uma ideia pop com claro gosto pelo prazer do cruzamento de referências, sabores e ideias. Álbum destemido, o disco junta temperos que vão de Gary Numan aos Sparks, de Frank Zappa a Aphex Twin, com uma pitada de sons digitais (que não escondem convívio com velhos jogos de computador), num todo onde a pulsão de experiência dialoga com um sentido de elegância pop que quase evoca os Roxy Music de inícios de 70. As canções vão da eficácia new wave de um Space And The Woods ao prazer intrigante da colagem, com tez teatral e percussão tribal, de um Bears Are Coming... 2008 já escutou discos melhores, é certo. Mas em nenhum o prazer da surpresa, faixa a faixa, se revela tão capaz de cativar a cada nova audição. Há já algum tempo a pop inglesa não nos dava uma estreia assim!
Late Of The Pier
“Fantasy Black Channel”
Parlophone / EMI
4 / 5
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O californiano Alfred Daedalus, que nos discos assina apenas como Deadalus, tem já uma vasta carreira discográfica, dispersa por diversas pequenas editoras independentes. E no ano em que se fez notar por uma manifestação, via hip hop, de apoio a Barack Obama, lança agora, na hora certa, o disco certo, no catálogo da Ninja Tune. Por outro lado, Love To Make Music To pode ser também o disco capaz de devolver o sentido de visão a uma das mais interessantes editoras dos últimos 20 anos, que há já algum tempo pedia por uma lufada de ar fresco. O que se passa então aqui? Herdeiro de um sentido de ecletismo e de requinte que nos Coldcut conhece “tradição” e, ao mesmo tempo, ciente das revelações da “idade DFA”, Daedalus propõe em Love To Make Music To um álbum no qual promove um encontro do presente com impressões, muitas delas colhidas na sua primeira viagem a Londres, em 1992. Não se trata de um manifesto de nostalgia digital. Nem mesmo de uma nova forma de expandir o conceito “retro” a domínios de diálogo entre a música electrónica e o hip hop. Love To Make Music To procura ser antes um veículo de expressão de memórias através do seu confronto com o presente. Assim afloram, num contexto presente, marcas da cultura house, r&b e mesmo o “momento” hardcore techno (então liderado por bandas como Altern 8 ou Leftfield, aqui com fruto evidente em Only For The Heart Strings ou I Took Two) que moraram em episódios dessa visita claramente marcante. As pistas colhidas são recontextualizadas, juntando-se a outros ingredientes, uns mais próximos do hip hop, outros do electro, numa série de temas que tentam não fugir à arquitectura da canção, e com momentos maiores nos flirts pop de Make It So (que sugere genética, mesmo longínqua, nuns Orange Juice) e I Car(ry) Us ou no festivo instrumental de abertura Fair Weather Friends. Relativamente longo, o álbum peca apenas pelo excesso de caminhos sugeridos, obrigando a uma tamanho banquete de ideias, citações e referências que nem todos poderão digerir sem a ajuda de sais de frutos por perto…
Daedalus
“Love To Make Music To”
Ninja Tune
4 / 5
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A descendência dos Simian, uma das raras promessas da pop de origem britânica nos primeiros anos da presente década, não se limita ao colectivo “dançável” Simian Mobile Disco (mais interessante enquanto equipa de produção que como autores de música). Simon Lord, o antigo vocalista dos Simian, começou por gravar a solo sob o pseudónimo Garden, em 2006. Chegou a colaborar num tema com os Groove Armada. E agora regressa, apresentando-se como Lord Skywave (nome que homenageia um sintetizador criado pelo seu pai nos anos 70), num álbum que cruza várias referências e géneros. Na verdade este é já o terceiro disco que apresenta este ano, os dois outros sendo uma mixtape e um disco, com o ex-Wiseguys DJ Touché, editado como Black Ghosts. Em Lord Skywave, Simon Lord cruza um evidente gosto pelo r&b e pelo dub com a herança familiar da obra da avó, a compositora Madeleine Dring, evidente seguidora das visões sugeridas pela música de Claude Debussy na alvorada do século XX. Não é a primeira vez que vemos netos a citar os avós em disco (basta recordarmo-nos de recente investida de semelhante opção pelos Fiery Furnaces em Rehearsing My Choir, de 2005). Aqui, contudo, Simon Lord toma velhos discos de 78 rotações e gravações em fita de peças da sua avó (para piano, flauta ou oboé) como ideias musicais que, sampladas, integra em novos contextos, frequentemente evocando o efeito atingido no álbum The Seduction Of Claude Debussy, no qual os Art Of Noise homenagearam o mesmo compositor francês que inspirou a avó Dring. O alinhamento intercala instrumentais que ecoam memórias com décadas de vida com canções nas quais a voz de travo r&b de Simon Lord encontra terreno fértil. O álbum sugere uma ideia de ponte entre gerações. São de facto muito interessantes as reconstruções sobre as peças de Madeleine Dring. E igualmente cativantes as “novas” canções de Simon. Falta apenas o diálogo que as una e faça um disco que seja mais que apenas uma boa ideia.
Lord Skywave
“Lord Skywave”
This Is Music
3 / 5
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Pode uma banda chegar ao quinto álbum sem que a sua música tenha chegado aos ouvidos do mundo? Pode, claro... E mais um exemplo mora nos Mixel Pixel. Quem? São hoje um trio mas, desde a origem, em 1997, uma aventura para a concretização da verve musical do artista (multifacetado, diz-se) Rob Corradetti. Mudou-se do Delaware para Brooklyn (não muito longe, sublinhe-se) em 1999 e desde 2001 edita regularmente discos como Mixel Pixel. Na base da vivência musical da banda parece existir uma clara admiração pelas grandes escolas, ricas em vitaminas criativas, de finais de 60, nomeadamente o rock psicadélico e a folk. De facto, ao longo da sua discografia, os Mixel Pixel foram mostrando recorrente presença destas heranças, às quais juntaram depois samples de vídeo, loops, texturas electrónicas, pop com sabor a teclados casio vintage, sob nada inesperada atitude lo-fi... Let’s Be Friends pode não fugir do quadro temático da pop indie que brota da Nova Iorque dos nossos dias. Mas ao menos foge aos filões mais concorridos do momento e dá sinais de uma certa irreverência arty, que se pode até confundir com uma aparente postura amadora. Let’s Be Friends não é um manifesto revolucionário nem sequer sonha em abrir novas janelas para dar nova luz à pop. Tem, contudo, a capacidade de arejar os ambientes. Entre a voz de Rob Corradetti e a da teclista Kaia Wong, as canções de Let’s Be Friends juntam à lista de referências afinidades várias com a cultura indie dos últimos 15 anos, ora piscando o olho aos Magnetic Fields ora a uns Galaxie 500... Não se espere aqui a surpresa, a revelação. Antes a certeza de, e num alinhamento curto, ter um belo disco leve e doce para escutar num fim de tarde.
Mixel Pixel
“Let’s Be Friends”
Mental Monkey
3 / 5
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Há muito que Conor Oberst deixou se ser um belo segredo partilhado entre os mais informados cultores da cena indie. Os últimos discos que lançou como Bright Eyes deram-lhe grande visibilidade e dele fizeram, com justiça, um dos mais aclamados entre os escritores de canções norte-americanos da sua geração. Pouco mais de um ano depois de Cassadaga, um álbum claramente menor de Bright Eyes, edita um novo disco, agora a solo. Na verdade não se trata de uma estreia uma vez que, entre 1993 e 96, então apenas no formato de cassete, havia já lançado três outros álbuns de canções editados em nome próprio. Nos primeiros meses deste ano juntou uma série de músicos numa localidade discreta em pleno México profundo. Numa vivenda de nome Valle Místico (o que conduziu ao “baptismo” da banda que com ele trabalhou como a Mystic Valley Band) gravou as canções que agora apresenta. Cape Canaveral, o belíssimo tema de travo folk que abre o disco, reafirma a rara capacidade de Oberst na construção de sugestões e de pequenas histórias com o recurso a um mínimo de recursos. Segue-se Sausalito, na qual mostra estar igualmente em “casa” ao avançar pelos terrenos do country rock... Caminhos diferentes podem, pelos vistos, coexistir, unidos por uma voz e uma mesma personalidade. O restante alinhamento revela contudo um álbum desigual que lança Connor Oberst num certo desnorte de intenções. Apesar da frequente presença de marcas de um cativante espírito inquieto (por vezes mesmo pessimista), de resto já habitual em muitos outros discos seus, o álbum está longe de representar o desejado reencontro com a forma, que recordamos não muito distante no díptico I'm Wide Awake It’s Morning/Digital Ash In A Digital Urn, de 2005... No fim fica uma dúvida: para quê editar como disco a solo um álbum que parece guardar em si o desejo de soar como uma banda?
Conor Oberst
“Conor Oberst”
Merge / Popstock
3 / 5
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Também esta semana:
Brian Wilson, Chemical Brothers (best of), Blancmange (reedições), Tom Verlaine (reedição), Teddy Thompson, Brett Anderson, Diplo + Santogold
Brevemente:
8 de Setembro: Calexico, Julian Cope, Glasvegas, Joan Baez, David Byrne, Parenthetical Girls, Fiery Furnaces (live)
15 de Setembro: Bomb The Bass, The Streets, The Cure, Soft Cell (remixes), Richard Barbieri, The Coral (best of), Noah and the Whale, Carbon/Silicon
22 de Setembro: Philip Glass (caixa 10 CD), John Adams, Kings Of Leon, Tori Amos (live), New Order (reedições), David Vandervelde, Spinto Band, Thievery Corporation, A.S. Mutter (Bach, Gubaidulina)
Setembro: Mercury Rev, Ani di Franco, Robert Fripp. 808 State (reedições), Tina Turner (best of)
Outubro: Of Montreal, Okkervil River, Annie, Grace Jones, Oasis, My Bloody Valentine (reedições), Ultravox (reedições), St Etienne (best of), Bob Dylan (bootleg series), U2 (reedição), Clash (live), The Sea and Cake, Kaiser Chiefs, Nitin Sawhney, Lambchop
Novembro: Smiths (best of), Paul Weller (BBC sessions)