Pertenço ao grupo de jornalistas que consideram que, em Portugal, há um enorme défice de reflexão e debate sobre a própria actividade jornalística. Será esse um grupo profissionalmente minoritário? Provavelmente sim, mas não me parece que isso seja uma boa razão para desistir de, pelo menos, tentar descrever algumas tendências que, a meu ver, condicionam o funcionamento de todo o espaço jornalístico.
Nomeio três dessas tendências, a meu ver das mais influentes na relação entre quem informa e quem é informado:
1) - a crescente contaminação de jornais e revistas pelo estilo telegráfico, condensado e muitas vezes ultra-simplificador da lógica dominante nos telejornais.
2) - o triunfo de uma cultura informativa e social com raízes no futebol, com a consequente secundarização de todas as outras formas culturais.
3) - a generalização dos valores da chamada "imprensa cor-de-rosa", promovendo modelos superficiais (o consumismo), simplificadores (a visão arrivista da sexualidade) e voyeuristas (a concepção do outro como "aquele-que-pode-ser-espiado").
1) - a crescente contaminação de jornais e revistas pelo estilo telegráfico, condensado e muitas vezes ultra-simplificador da lógica dominante nos telejornais.
2) - o triunfo de uma cultura informativa e social com raízes no futebol, com a consequente secundarização de todas as outras formas culturais.
3) - a generalização dos valores da chamada "imprensa cor-de-rosa", promovendo modelos superficiais (o consumismo), simplificadores (a visão arrivista da sexualidade) e voyeuristas (a concepção do outro como "aquele-que-pode-ser-espiado").
Dito isto, e mesmo com todo o cepticismo que isto implica, confesso que nada me faria adivinhar que um jornal viesse promover "uma campanha a nível mundial" para que um jogador de futebol seja distinguido com um prémio. Mais concretamente, A Bola criou uma petição para que Cristiano Ronaldo receba o título de melhor jogador do mundo, atribuído pela FIFA — a petição está a decorrer no site do jornal, para depois ser enviada "aos seleccionadores nacionais e capitães de equipa das 207 federações inscritas na FIFA".
Como leitor, devo dizer que a petição me parece uma proposta completamente deslocada e pueril. Como se, por hipótese, o jornal Variety montasse uma petição, dirigida à Academia de Hollywood, no sentido de o filme A ou B ser distinguido de determinada maneira nos próximos Oscars... Não será que aquilo que faz o sentido — e também o valor — de um prémio é o seu próprio particularismo, isto é, o facto de emanar de um colectivo específico e não de grupos de pressão da "opinião pública"?
Como leitor, devo dizer que a petição me parece uma proposta completamente deslocada e pueril. Como se, por hipótese, o jornal Variety montasse uma petição, dirigida à Academia de Hollywood, no sentido de o filme A ou B ser distinguido de determinada maneira nos próximos Oscars... Não será que aquilo que faz o sentido — e também o valor — de um prémio é o seu próprio particularismo, isto é, o facto de emanar de um colectivo específico e não de grupos de pressão da "opinião pública"?
Mas esses são apenas os aspectos mais rudimentares da questão. Escusado será dizer que não está em causa a legitimidade de o jornal desencadear este processo nem, muito menos, o talento futebolístico de Cristiano Ronaldo. Vale a pena, isso sim, avaliar o subtexto simbólico da iniciativa.
Que se defende, então, quando se defende que é "da mais elementar justiça" distinguir Cristiano Ronaldo como melhor jogador do mundo?
A resposta é: defende-se um modelo. E não apenas de jogador. De facto, a petição assume-se como exaltação de qualquer coisa que tem a ver com os nossos modos de vida e, em particular, com a vida dos mais jovens. Isto porque Cristiano Ronaldo afirmou-se "como um ícone da juventude e é, para muitos, sinónimo de futebol espectáculo."
Porquê um ícone da juventude? Que formas de comportamento são regularmente exaltadas a pretexto de Cristiano Ronaldo? Lembro três:
a) - possuir carros de luxo.
b) - jogar playstation.
c) - ter uma nova namorada de três em três meses.
Repare-se: nenhuma destas três alíneas nos diz seja o que for sobre os seus méritos como jogador. Em boa verdade, são elementos da sua vida privada que só a ele pertencem — o que realmente choca é que haja discursos jornalísticos que promovem a exploração pública, gratuita e obscena, de tais elementos.
É isso que faz a petição de A Bola? Não. O que a petição de A Bola faz é acentuar ainda mais a ideologia da heroicização que passou a dominar as formas jornalísticas de tratamento das proezas desportivas dos nossos atletas. É uma ideologia simplista, em termos humanos, e redutora no plano criativo. No limite, este tipo de intervenção pública, ainda que motivada pela mais cândida paixão pelo futebol, pode favorecer o agravamento de um patriotismo grosseiro e revanchista — neste contexto, se algum cidadão (por exemplo, um jornalista) se atrever a defender as qualidades de excepção de um Káká, um Lampard ou um Fernando Torres, não só corre o risco de ser insultado, mas de ser ostracizado como anti-português.