segunda-feira, setembro 08, 2008

Ana Gomes contra Sarah Palin

1. EUA/Portugal — Num artigo muito didáctico do Diário de Notícias (7 de Setembro), intitulado ‘Os portugueses e as eleições america-nas’, João Miranda tira esta conclusão exemplar: “A barreira informativa entre os Estados Unidos e Portugal tende a criar uma série de equívocos. Alguns intelectuais portugueses, sobretudo os que estão mais à esquerda, projectam os seus valores e os seus interesses no eleitorado americano e esperam que este se comporte de acordo com esses valores e interesses. Quando o eleitorado americano não se comporta como o esperado, os intelectuais de esquerda concluem, como concluíram quando George Bush foi eleito e reeleito, que os americanos são estúpidos. Estes intelectuais cometem um erro básico: tentam analisar as eleições americanas sem se darem ao trabalho de compreender o contexto político e cultural em que elas ocorrem. Em vez de produzirem análises objectivas e imparciais, limitam-se a expressar os seus desejos.”

2. Ser ou não ser uma lasca — O que talvez não se esperasse é que essa falta de disponibilidade para “compreender o contexto” em que acontecem as eleições americanas pudesse dar origens a inter-venções que, embora vindas de protagonistas da cena política, estão ao nível das mais medíocres formas de intervenção analítica (?) que a Internet todos os dias gera e difunde. Estou a pensar, concretamente, num texto de Ana Gomes, militante do Partido Socialista e deputada do Parlamento Europeu, publicado no blog Causa Nossa. Sob o título 'A lasca do Alasca', a autora do texto tece uma série de considerações sobre Sarah Palin, candidata republicana à vice-presidência dos EUA. A motivação do título é explicitada logo de início, numa referência ao seu discurso de aceitação: “Sarah Palin, a lasca do Alasca, estonteou, de facto, toda a gente! Não necessariamente pelas mais auspiciosas razões. Claro que é gira e, à primeira vista, desenvolta frente a câmaras e microfones...”
Desde logo, a baixeza do argumento machista é estonteante: não só Palin comete o pecado de ser “gira” como, deduz-se, tem o supremo azar de ter nascido mulher (escândalo supremo, também referido: foi capa da Vogue!!!). Aliás, o retrato que é feito do ticket republicano, além dessa vulgar suspeição da beleza, envolve também insinuações que passam pela ficha médica do candidato John McCain: não só “ninguém” (?) reconhece competência a Palin, como seria perigoso “imaginá-la como possível substituta na Casa Branca do mais velho candidato presidencial de sempre - 72 anos, cumpriu McCain nesse dia - e com longo historial de fintas ao cancro.” Ficamos, assim, a saber duas coisas: que sinais de beleza ou história cancerígena são factores politicamente irrecomendáveis. Face a tão exuberantes manifestações de solidariedade humana, torna-se pertinente perguntar a Ana Gomes se aprovaria qualquer tipo de marginalização — por exemplo em relação a si própria — por qualquer um desses factores.

3. Pensar e pensar politicamente — O tom chocarreiro do texto, de facto ao nível do pior que se pode encontrar no espaço bloguista, vai por aí fora, tratando Palin por “babe” e concluindo: “Cheira-me que ainda não assistimos a nada na avalanche soterradora [?] que o derretimento de John McCain pela lasca do Alasca promete ao Partido Republicano.”
Acredito que, nos EUA, tanto bastaria para que McCain movesse um processo contra Ana Gomes. Em todo o caso, o meu ponto é outro. A saber: considero escassa a visão meramente jurídica deste tipo de atropelos ao simples gosto de pensar — e de pensar a política, isto é, de ser político pensando. De facto, estamos perante uma apoteose de uma ideologia preconceituosa que confunde a difamação de quem é diferente, politicamente diferente, com as regras democráticas do combate de ideias.

4. A “criancinha” — Ana Gomes arrasta a sua infelicidade discursiva, indo ao ponto de fazer um parêntesis para referir o filho mais novo de Sarah Palin, um bebé de cinco meses atingido por uma forma peculiar de distúrbio genético. As palavras são estas: “a exibição da criancinha com sindroma de Down “sucks” [= é nojenta]”.
Primeiro, importa dizer que o bebé se chama Trig Palin e não há nenhuma razão, política ou outra, para o tratar com o depre-ciativo “criancinha”; segundo, que Sarah Palin dá mostras de uma atitude realmente revolucionária, combatendo o preconceito que leva a esconder os “deficientes”, mostrando serenamente o filho durante um acto público em que a apresentação da sua família era essencial.

5. Para além da direita/esquerda — No seu carácter soez, a menoridade intelectual deste tipo de intervenções (?) ajuda a explicar muitos sinais de descrença dos portugueses em relação à classe política e, mais concretamente, o desgaste do pensamento daquilo que, à falta de melhor, se continua a chamar esquerda.
Discursos como aquele que é sustentado por Ana Gomes traduzem mesmo uma absoluta incapacidade, já não digo de pensar, mas pelo menos de supor que a tradicional dicotomia direita/esquerda não basta para compreender muitas das dinâmicas do espaço político contemporâneo — a superação simbólica dessa dicotomia é, aliás, uma das mais estimulantes equações do pensamento político contemporâneo, todos os dias mascarada, não por acaso, à direita e à esquerda.
A demarcação em relação ao tom, ao estilo e à moral das palavras de Ana Gomes não depende de um tipo específico de “filiação” ou “orientação”. Se isso tem alguma importância neste contexto, posso referir que, em termos subjectivos, me sinto exterior a muitos valores defendidos por Sarah Palin, a começar pelo modo como ela equaciona a relação das mulheres com a sua própria sexualidade e, em particular, com a gravidez; ao mesmo tempo, se alguém tem procurado combater o mero confronto das "per-sonalidades" com a vontade de enfrentar os "problemas" da sociedade americana, esse alguém é, a meu ver, Barack Obama.
Em todo o caso, mais do que nunca, importa lembrar que o presente em que vivemos nunca é “a-preto-e-branco” e que esta retórica de “lascas”, “babes” e “criancinhas” não constitui apenas um desastre argumentativo: é também a prova real de que algum pensamento de esquerda vive marcado por uma quotidiana incapacidade de lidar com a complexidade do mundo. Vive e morre.