De Alain Resnais, já tinhamos visto este ano um dos mais sérios candidatos ao título de melhor filme do ano: Corações (2006). Digamos, então, para simplificar que, agora, Resnais passa a ter dois filmes nessa mesma condição. O outro é, de facto, anterior — Nos Lábios Não (2003) — e foi recentemente lançado, directamente em DVD. Que é como quem diz: algo continua mal num mercado que vive destas "esperas" (cinco anos...) e já não consegue dar visibilidade a tão sofisticado produto, já agora, por mero acaso, assinado por um dos mestres absolutos da história do cinema (bastaria a sua primeira longa-metragem, Hiroshima Meu Amor, lançada em 1959, para lhe conferir esse estatuto).
Que nos propõe, então, Resnais? Mais uma variação musical, ou melhor, uma deambu-lação pela música. Nos Lábios Não — a tradução correcta seria "Na Boca Não" (Pas Sur la Bouche) — adapta uma opereta dos anos 20, de André Barde e Maurice Yvain, tecida a partir de um labirinto de relações que, por um lado, põem à prova as muitas hipocrisia sociais e, por outro lado, são vividas/encenadas através de uma calculada cumplicidade com os espectadores — Resnais transfigura essa cumplicidade teatral em deliciosos momentos de "diálogo" das personagens com a câmara.
Reencontramos, aqui, a excelência de uma troupe de actores que Resnais adoptou há muitos anos e muitos filmes: Sabine Azéma, Pierre Arditi [os dois na foto] e Lambert Wilson são impecáveis como sempre, lado a lado com Audrey Tautou, Isabelle Nanty, Daniel Prévost e Darry Cowl. E reencontramos, acima de tudo, a elegância milimétrica de uma mise en scène que, para além do seu subtil humor, vive a partir de um constante desafio do espaço e do tempo — observem-se as espantosas soluções de Resnais para mudar de cena, mudando apenas alguns elementos do cenário, mas conservando a estrutura cenográfica global (com a escadaria de madeira).
Em resumo: este é um exercício cinematográfico cujo sereno e assumido primitivismo o coloca na linha da frente do cinema contemporâneo, celebrando a narrativa fílmica como um modelo único de apropriação do mundo — e também da sua sábia e enigmática distanciação.