Recentemente, pudemos descobrir espantosos telediscos dos Radiohead (House of Cards) e Grace Jones (Corporate Cannibal) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Agosto), com o título 'Novas visões de raiz musical'.
De vez em quando, face às evoluções tecnológicas, vale a pena recolocar as perguntas básicas, essas que nos ajudam a compreender e pensar de onde vêm as coisas (eventualmente, para onde vão…). Assim, por exemplo, as imagens cinematográficas. Ou, se preferirem, para não fazer discriminação, as imagens em movimento. De onde vêm? De um princípio rudimentar que, em finais do século XIX, ajudou a transfigurar os mundos revelados pela fotografia. É um princípio de relação entre algo que regista e algo que é registado. A saber: uma câmara que, graças às maravilhas da óptica e da química, regista numa película uma determinada acção.
Enfim, sabemos já há algum tempo que nem tudo é tão linear nem tão constante… Nos últimos anos, em particular, as proezas anunciadas do digital transformaram, e continuam a transformar, os modos de produção/difusão das imagens, de tal modo que as certezas mais tradicionais (leia-se: enraizadas no século XX) se tornaram memórias históricas.
Exemplo recente e fascinante é o teledisco de House of Cards, dos Radiohead [do álbum In Rainbows]. São rostos e paisagens tocadas por um assombramento propriamente onírico, desafiando as leis figurativas das imagens com que, apesar de tudo, ainda estamos habituados a lidar. Registado com um sistema de lasers que permite medir as distâncias a que se encontram os objectos, a partir daí gerando uma imagem, House of Cards faz pensar, com alguma saborosa ironia, em alguns célebres quadros de Georges Seurat (1859-1891) e, de um modo geral, no pontilhismo de finais do século XIX: são pequenos pontos luminosos que definem formas reconhecíveis, por assim dizer alterando a sensação de volume e matéria. Mais ainda: a técnica utilizada permite manipular as informações registadas pelos lasers, alterando as suas formas e até produzindo um efeito de dissipação, como se assistíssemos ao movimento imprevisível do pó das estrelas.
Também há poucas semanas, Grace Jones lançou o teledisco de Corporate Cannibal, primeiro single do álbum Hurricane (lançamento a 27 de Outubro). Assinado por Nick Hooker, o teledisco concentra-se naquilo que podemos considerar um tradicional plano médio da cantora. Com uma diferença que está longe de ser banal: as imagens (a preto e branco) apresentam-se em permanentes e inquietantes convulsões, como se o corpo de Grace Jones [foto em cima] tivesse sido tocado por um vírus figurativo que a impede de aquietar numa imagem única e reconhecível.
Tanto no mundo etéreo dos Radiohead como na paisagem quase de filme de terror habitada por Grace Jones, deparamos com um mesmo método de trabalho: trata-se de reinvestir a figura humana, “forçando-a” a significar para além da sua estabilidade clássica.
Em boa verdade, não nos podemos mostrar exactamente surpreendidos. Bem vistas as coisas (e é mesmo disso que se trata: ver as coisas), já passou mais de um século desde que os nossos avós e bisavós puderam descobrir Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso [quadro em rodapé], e assistir às maravilhas disformes e fragmentárias da revolução cubista. Acima de tudo, importa voltar a registar este moderno poder da música e das suas formas de difusão, capaz de desafiar o nosso olhar para novas aventuras figurativas. Ver é também ter visões.
De vez em quando, face às evoluções tecnológicas, vale a pena recolocar as perguntas básicas, essas que nos ajudam a compreender e pensar de onde vêm as coisas (eventualmente, para onde vão…). Assim, por exemplo, as imagens cinematográficas. Ou, se preferirem, para não fazer discriminação, as imagens em movimento. De onde vêm? De um princípio rudimentar que, em finais do século XIX, ajudou a transfigurar os mundos revelados pela fotografia. É um princípio de relação entre algo que regista e algo que é registado. A saber: uma câmara que, graças às maravilhas da óptica e da química, regista numa película uma determinada acção.
Enfim, sabemos já há algum tempo que nem tudo é tão linear nem tão constante… Nos últimos anos, em particular, as proezas anunciadas do digital transformaram, e continuam a transformar, os modos de produção/difusão das imagens, de tal modo que as certezas mais tradicionais (leia-se: enraizadas no século XX) se tornaram memórias históricas.
Exemplo recente e fascinante é o teledisco de House of Cards, dos Radiohead [do álbum In Rainbows]. São rostos e paisagens tocadas por um assombramento propriamente onírico, desafiando as leis figurativas das imagens com que, apesar de tudo, ainda estamos habituados a lidar. Registado com um sistema de lasers que permite medir as distâncias a que se encontram os objectos, a partir daí gerando uma imagem, House of Cards faz pensar, com alguma saborosa ironia, em alguns célebres quadros de Georges Seurat (1859-1891) e, de um modo geral, no pontilhismo de finais do século XIX: são pequenos pontos luminosos que definem formas reconhecíveis, por assim dizer alterando a sensação de volume e matéria. Mais ainda: a técnica utilizada permite manipular as informações registadas pelos lasers, alterando as suas formas e até produzindo um efeito de dissipação, como se assistíssemos ao movimento imprevisível do pó das estrelas.
Também há poucas semanas, Grace Jones lançou o teledisco de Corporate Cannibal, primeiro single do álbum Hurricane (lançamento a 27 de Outubro). Assinado por Nick Hooker, o teledisco concentra-se naquilo que podemos considerar um tradicional plano médio da cantora. Com uma diferença que está longe de ser banal: as imagens (a preto e branco) apresentam-se em permanentes e inquietantes convulsões, como se o corpo de Grace Jones [foto em cima] tivesse sido tocado por um vírus figurativo que a impede de aquietar numa imagem única e reconhecível.
Tanto no mundo etéreo dos Radiohead como na paisagem quase de filme de terror habitada por Grace Jones, deparamos com um mesmo método de trabalho: trata-se de reinvestir a figura humana, “forçando-a” a significar para além da sua estabilidade clássica.
Em boa verdade, não nos podemos mostrar exactamente surpreendidos. Bem vistas as coisas (e é mesmo disso que se trata: ver as coisas), já passou mais de um século desde que os nossos avós e bisavós puderam descobrir Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso [quadro em rodapé], e assistir às maravilhas disformes e fragmentárias da revolução cubista. Acima de tudo, importa voltar a registar este moderno poder da música e das suas formas de difusão, capaz de desafiar o nosso olhar para novas aventuras figurativas. Ver é também ter visões.