
De vez em quando, face às evoluções tecnológicas, vale a pena recolocar as perguntas básicas, essas que nos ajudam a compreender e pensar de onde vêm as coisas (eventualmente, para onde vão…). Assim, por exemplo, as imagens cinematográficas. Ou, se preferirem, para não fazer discriminação, as imagens em movimento. De onde vêm? De um princípio rudimentar que, em finais do século XIX, ajudou a transfigurar os mundos revelados pela fotografia. É um princípio de relação entre algo que regista e algo que é registado. A saber: uma câmara que, graças às maravilhas da óptica e da química, regista numa película uma determinada acção.
Enfim, sabemos já há algum tempo que nem tudo é tão linear nem tão constante… Nos últimos anos, em particular, as proezas anunciadas do digital transformaram, e continuam a transformar, os modos de produção/difusão das imagens, de tal modo que as certezas mais tradicionais (leia-se: enraizadas no século XX) se tornaram memórias históricas.

Também há poucas semanas, Grace Jones lançou o teledisco de Corporate Cannibal, primeiro single do álbum Hurricane (lançamento a 27 de Outubro). Assinado por Nick Hooker, o teledisco concentra-se naquilo que podemos considerar um tradicional plano médio da cantora. Com uma diferença que está longe de ser banal: as imagens (a preto e branco) apresentam-se em permanentes e inquietantes convulsões, como se o corpo de Grace Jones [foto em cima] tivesse sido tocado por um vírus figurativo que a impede de aquietar numa imagem única e reconhecível.
Tanto no mundo etéreo dos Radiohead como na paisagem quase de filme de terror habitada por Grace Jones, deparamos com um mesmo método de trabalho: trata-se de reinvestir a figura humana, “forçando-a” a significar para além da sua estabilidade clássica.
Em boa verdade, não nos podemos mostrar exactamente surpreendidos. Bem vistas as coisas (e é mesmo disso que se trata: ver as coisas), já passou mais de um século desde que os nossos avós e bisavós puderam descobrir Les Demoiselles d’Avignon (1907), de Picasso [quadro em rodapé], e assistir às maravilhas disformes e fragmentárias da revolução cubista. Acima de tudo, importa voltar a registar este moderno poder da música e das suas formas de difusão, capaz de desafiar o nosso olhar para novas aventuras figurativas. Ver é também ter visões.
