quarta-feira, julho 02, 2008

"Speed Racer": o nascimento de um culto?

Vale a pena regressar a Speed Racer. O seu fraco impacto — tanto nas bilheteiras como junto da muitos sectores jornalísticos (de ambos os lados do Atlântico) — transforma-o num concorrente menor na tradicio-nal "guerra de blockbusters". Ora, justamente, trata-se de superar essa dimensão mais imediata, imposta pelo mercado, e tentar partilhar a reflexão sobre uma pergunta: até que ponto esta nova experiência dos irmãos Wachowski possui (ou pode possuir) uma dimensão artística e tecnologicamente premonitória? — o texto que se segue foi publicado no Diário de Notícias (28 Junho), com o título 'O efeito dos efeitos especiais'.

As expectativas comerciais em torno de um filme são quase sempre equívocas. Não porque o “sucesso” ou “insucesso” de um filme nos permita compreender a sua verdade específica (isto é, especifi-camente cinematográfica). Antes porque tais expectativas tendem a reduzir esse mesmo filme a um objecto de puro marketing... E, até prova em contrário, a ideologia consumista dos profissionais do marketing não é um bom instrumento para entender o cinema e as suas linguagens.
Assim está a acontecer, na Europa, com Speed Racer, novo filme dos irmãos Wachowski, esses criadores mais ou menos reclusos que conceberam a fabulosa trilogia Matrix (1999/2003/2003). De facto, a sua performance nas salas dos EUA (menos de 50 milhões de dólares para um orçamento superior a 120) tende a ser apresentada pelo jornalismo mais preguiçoso como um sintoma de que estaríamos perante uma mera colagem de efeitos especiais, rotineira e descartável... Quanto mais não seja por uma razão de limpeza mental, importa lembrar que a história dos efeitos especiais não é um capítulo autónomo na história do cinema. Mais do que isso: não há efeitos espe-ciais “bons” e “maus”, mas filmes que os integram de forma mais ou menos interessante e inovadora.
Ora, justamente, em Speed Racer, o efeito dos efeitos especiais (passe a redundância) revela-se absolutamente decisivo e, como agora se diz, estruturante. Trata-se de re-produzir o universo de uma popularíssima série de desenhos animados japoneses, gerada a partir de uma banda desenhada. É um fenómeno que resiste desde os anos 60, com um número crescente de fãs. É, acima de tudo, um fenómeno que se enraíza numa curiosa dicotomia: por um lado, temos um herói à maneira clássica, o jovem “Speed Racer” (Emil Hirsch, que vimos como actor principal de O Lado Selvagem, de Sean Penn) empenhado em assumir a herança do seu irmão, também corredor de velocidade, desaparecido num acidente trágico; por outro lado, um visual de cores e formas exuberantes, devedor dos artifícios da BD e, mais recentemente, dos espaços dos jogos de video.
Os Wachowski conseguem algo de histórico que pode muito conferir a Speed Racer o estatuto de filme de culto. A saber: uma espécie de universo de síntese em que a fusão de todos estes registos acaba por gerar novas soluções narrativas, em particular no cruzamento de passado e presente tal como é apresentado na primeira metade do filme (eventualmente, há que reconhecê-lo, dificultando a leitura dos espectadores mais jovens). Além do mais, tudo isso acontece sem que, paradoxalmente, sejam postos em causa os valores mais tradicionais de composição de actores como John Goodman, Susan Sarandon e Christina Ricci; Sarandon, em particular, é brilhante na interpretação da mãe protectora que, em todo o caso, não quer que o filho abandone o desejo de correr.

>>> Este é o teledisco da canção-tema de Speed Racer, interpretada por Ali Dee and the Deekompressors.